Os grupos em análise e a análise de grupo

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O Grupo de Consciência Corporal do CAPS-AD [do município de Itatiba, no interior de São Paulo] inicia-se em outubro de 2012, realizado de forma voluntária, tendo como objetivo aplicar técnicas corporais e de relaxamento pautadas em Reich e seus seguidores, buscando desta forma associar a teoria proposta por Freud frente ao processo comunicativo – vincular, buscando uma compreensão psicanalítica dos fenômenos grupais, levando o sujeito a desenvolver o senso de realidade, além de promover desintoxicação e bem-estar através da respiração.

É sabido e aceito que as emoções não plenamente sentidas e não expressas passam por um processo de negação. Esse conteúdo se torna isolado e deixa de ser percebido pela consciência, embora a carga energética, ou libido, ainda necessite encontrar seu destino. Tal destino costuma ser o sistema de couraças, ou seja, contrações em diferentes sistemas do organismo, que com o passar do tempo se cronificam e passam a ser percebidas como a própria identidade ou maneira de ser.

Assim, temos pessoas cronicamente distraídas, que na verdade se ausentam com frequência da realidade presente e do contato humano, pessoas de pavio curto, que não sabem ou não conseguem se apropriar e direcionar positivamente sua agressividade, outras para as quais se cunhou o termo ‘amar demais’, incapazes de se sustentar no mundo sobre as próprias pernas e lidar com frustrações, desapontamentos e situações de abandono a que a vida inevitavelmente nos submete.

As principais teorias grupais com objetivo terapêutico visam apoiar esse tipo de trabalho e são de inspiração psicanalítica, havendo atualmente uma preocupação mundial em pesquisar e procurar elaborar teorias próprias de grupo.

Lembrando-se de Fernando Pessoa (“Navegar e preciso”), Osório enfatiza que aprender a trabalhar com grupos é preciso, em dois sentidos, no sentido de que é necessário, mas também “… de algo que cada vez se faz com mais precisão e menos empiricamente…”.

Como na maioria dos grupos, mesmo em se tratando de grupos terapêuticos, não se está em busca de esclarecer o passado, mas sim de melhorar a qualidade de vida presente e futura, uma vez que ele é o espaço continente e facilitador da busca de condições para um futuro melhor.

O caso P.IMG_20150821_103026860

Um grupo flutuante, onde alguns permanecem fortes em seu propósito de se recuperar e muitos cedem às tentações e recaem, anestesiando a realidade em uma tentativa de evitar o sofrimento. Surge no grupo um líder que se destaca entre os demais, surge o leviano que não se compromete com o tratamento, mas o que chama a atenção é a forte união do grupo e o apoio existente entre um e outro, decorrente de identificação nos sintomas e o forte desejo de voltar ao convívio da sociedade.

A aceitação da proposta terapêutica foi unanime entre os pacientes do intensivo e semi-intensivo. Aguardavam pela sexta feira, se preocupavam com a limpeza do galpão e providenciavam a organização do espaço, sem que fosse preciso solicitar. A adesão e frequência pelos internos deixava-me ainda mais comprometida com eles e satisfeita com os resultados.

Após 7 meses de trabalho, surge no grupo o paciente P., homem franzino, de cadeira de rodas, que não falava, quase não se mexia e com higiene pessoal extremamente precária. P. apresentava secreção nasal pelo rosto todo, conduzido ao nosso grupo através de um irmão, uma vez que P. encontrava-se em situação de rua (fazendo uso de álcool, cocaína e crack).

O paciente apresentava-se bastante comprometido clinicamente, com sinais de pelagra ainda, apresentando períodos de confusão mental, atitude apática, humor hipotérmico, afeto congruente e sem alterações na senso-percepção; juízo e crítica preservados.

O grupo preocupava-se em nunca deixá-lo isolado. Conduziam sua cadeira de rodas para todos os lados e fizeram questão de me apresentar a ele.

O recebi em minha aula. Mesmo sabendo da impossibilidade de movimentos, ele precisava se sentir parte integrante do grupo e, se apenas respirasse [de acordo com a proposta], já seria de grande valia. Em silêncio, praticava a respiração, buscando levar a consciência para o corpo todo, e sempre que possível alongava e contraía seus membros.

O progresso de P. foi tão grande que em algumas semanas, mesmo sem conseguir falar, pedia balbuciando e gesticulando que queria deitar-se no chão, junto com os demais colegas do grupo, e praticar o relaxamento proposto para final da aula. Neste dia o relaxamento se estendeu à conscientização do corpo, dos limites e dos desejos, buscando trazer a percepção de cada célula dos integrantes para aquela situação.

Ao final, ao colocá-lo de volta em sua cadeira de rodas com auxílio de alguns integrantes, ouvi um “muito obrigado!”. Seus olhos fitavam os meus com um brilho diferente. Assim, ao longo daquele mês, P. foi apresentando progressos, passando para um andador, uma muleta e até que um dia, para nossa surpresa, P. estava limpo, sem apoios para se manter em pé e conversava com os demais pacientes.

Via-se claramente a influência do grupo naquele homem, a desejo de reabilitar-se e voltar a viver. Devolvia com satisfação os cuidados recebidos aos novos integrantes, que todos os dias chegavam à instituição, colocando-se à disposição para ajudá-los no que fosse preciso, assim como foi feito consigo. Nas atividades propostas, P. era o primeiro a estender o forro para exercitar-se no chão, e sentar-se para respirar (processo aeróbico). Dizia acreditar que a respiração estava lhe devolvendo a vida, o que, em nossa leitura, traduzia-se no prazer de viver.

Este prazer de viver de P. contagiou a todos. Sabemos das dificuldades de se trabalhar com adictos, e das dificuldades que enfrentam em se manterem sóbrios, mas nestes três anos de trabalho com o grupo de pacientes do CAPS-AD, foi a “safra” de internos que em maior quantidade chegou a concluir a proposta terapêutica, se mantendo sóbria até a presente data. Desse grupo, muitos voltaram ao convívio familiar, ressocializados e conscientes de seus limites, desenvolvendo internamente a noção de expandir sua atuação na sociedade a que foram inseridos.

Saliento um momento vivido com P. frente à sua história, a qual transcrevo um trecho:

“Eu não sei ler, não… Estudei até a segunda série, aprendi a escrever o nome e só. Meu pai fugiu de casa e minha mãe, com muitos filhos, não tinha o que nos dar pra comer; andava mais de 7 km todos os dias pra pedir na cidade algo pra gente comer à noite. Com 10 anos, saí dessa vida de secura no sertão e corri o mundo na boleia do caminhão. E foi assim que comecei a beber… Sem pai, nem mãe, meu mundo não tinha limite; já fiz de tudo nessa vida, até que conheci isso aqui e agora descobri que posso viver.” (Informação verbal, outubro de 2013.)

O que surpreende é o fato de que P. tinha apenas 39 anos; poderíamos pensar que beirava os 60, devido à fragilidade física, debilitada pelo uso abusivo de substâncias. Apesar de sua fragilidade física, o grupo continuava com os cuidados, pois a demonstração de sua recuperação era exemplar. P. chega a surpreender; em dado momento o mesmo chega a dar o depoimento de vida e de sua trajetória frente à recuperação para uma plateia presente na Câmara Municipal.

Alguns dias após o depoimento, descobrimos que P. apresenta dores abdominais, vômitos e dificuldades de evacuação, inapetente e dor, piora na inspiração (informe do médico clínico), sendo P. encaminhado para o PS para avaliação. Após 4 dias, P. vem a falecer.

Nossa experiência com P. foi transformadora para todo o sistema, nós e os clientes. Reforçamos nossa fé e a crença de que o cuidado e a verdade, mesmo diante de um trauma, mobilizam emoções no organismo, que tem a mesma capacidade na recuperação da dor e para o amor. A transformação, de uma apatia cruel presa em uma cadeira de rodas em um orador consciente na Câmara Municipal, tomaram para si este prazer de viver, que tanto empolgava o nosso grande amigo P.

 

REMUS MARIN STANCU
Psicólogo clinico e coordenador do CAPS-AD (Itatiba/SP)

SILVIA HELENA COUTO
Terapeuta corporal Neo Reichiana, que desenvolve voluntariamente o trabalho pioneiro de
Consciência Corporal junto aos adictos, pelo Spaço Therapeutico (www.spacotherapeutico.com.br).