Ação mais devastadora

Tempo de leitura: 4 minutos

A série Narcos, produzida pelo Netflix e dirigida por José Padilha conta, em suas primeiras temporadas, a história do império construído por Pablo Escobar, que ganhou muito dinheiro com o tráfico de cocaína. A quantidade astronômica de dólar que o traficante colombiano ganhou é proporcional à quantidade astronômica de cocaína consumida na época – nos anos 1970 e início dos anos 1980, o pó branco era a droga da moda, notadamente nos Estados Unidos.

Anúncio de cocaína publicado nos anos 1970 (Crédito: Reprodução/The World’s Best Ever)

Estima-se que o mercado americano era responsável por injetar inacreditáveis US$ 420 milhões por semana nos bolsos de Escobar. O consumo da droga nos Estados Unidos era tão comum que anúncios de itens utilizados para o consumo da cocaína eram impressos em revistas e jornais.

A cocaína ativa rapidamente todos os setores do sistema de recompensa do cérebro por aumentar os níveis de dopamina três vezes mais do que o normal. Sendo assim, seria natural que os usuários de início precoce de cocaína – antes dos 18 anos – exibam alterações neuropsicológicas mais pronunciadas, com prejuízos nas funções do cérebro. E que tais usuários tenham maior frequência de consumo de outras substâncias, como álcool e maconha, do que o grupo de início tardio – após os 18 anos.

Estas foram as constatações de um estudo do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). Liderado pela neuropsicóloga Bruna Mayara Lopes, a pesquisa avaliou 103 dependentes de cocaína.

Bruna afirma que, por ser um período crucial para o desenvolvimento neurológico, é na adolescência que o cérebro está em transformação. É nesta fase que acontece a chamada “poda neural, quando neurônios sem uso são eliminados para refinar o funcionamento de outras áreas do cérebro, como o córtex frontal”, explica Bruna.

Ela também afirma que o córtex frontal é uma área “muito importante para a realização de funções executivas, tais como a memória do trabalho (capacidade de manter um número de informações enquanto executa uma tarefa), o controle inibitório e o planejamento. O uso de cocaína na adolescência pode levar a alterações, comprometimento e perda de funções cerebrais importantes para o dia-a-dia”.

Poucos estudos têm investigado o impacto do uso precoce da cocaína no desempenho cognitivo e nos padrões de uso de substâncias como álcool e maconha, aponta a neuropsicóloga da USP.

Bruna conta que entre os 103 pacientes dependentes de cocaína havia 52 com início precoce (ou seja, que começaram a usar a substância antes dos 18 anos).  Outros 51 tiveram início tardio no uso de cocaína, após os 18 anos (em média com 21 anos, diz ela). “Além disso, para comparar os resultados dos testes, foi avaliado um grupo controle com 63 pessoas saudáveis”.

Uma bateria de testes com duas horas de duração avaliou o funcionamento neuropsicológico: a memória de trabalho, a atenção sustentada (ou seja, a manutenção de foco durante a realização de uma tarefa e a memória declarativa, que é a capacidade de resgatar uma informação que foi recebida há 30 minutos). Já o uso de álcool, maconha e tabaco foi avaliado por meio de questionário que mede o índice de gravidade de dependência, explicou Bruna.

Segundo ela, “as análises mostraram que o grupo de usuários precoces apresentou maior déficit cognitivo, com pior desempenho na atenção sustentada, na memória de trabalho e na memória declarativa em relação ao grupo controle”. O grupo de início tardio apresentou comprometimento na atenção dividida na comparação com as pessoas saudáveis. “Os usuários precoces também apresentaram maior uso de maconha e álcool do que os de início tardio”, acrescentou a neuropsicóloga.

Os déficits cognitivos mais proeminentes nos usuários precoces provavelmente refletem um impacto negativo do uso de cocaína nos estágios do neurodesenvolvimento na adolescência. Isto pode estar relacionado com características clínicas mais severas do transtorno de substância neste subgrupo, incluindo abuso de outras substâncias, como álcool e cocaína. “O cérebro ainda pode se desenvolver até os 21 ou 22 anos, porém o uso precoce de cocaína pode causar prejuízo a áreas que estão em fase importante de formação”, explicou Bruna.

Além dela, o artigo é assinado por Priscila Dib Gonçalves, Mariella Ometto, Bernardo dos Santos, Mikael Cavallet, Tiffany Moukbel Chaim-Avancini, Maurício Henriques Serpa, Sérgio Nicastri, André Malbergier, Geraldo Busatto, Arthur Guerra de Andrade e Paulo Jannuzzi Cunha.

O estudo completo, publicado na revista Addictive Behaviors, pode ser acessado clicando aqui.

 

Fonte: Jornal da USP