A redução de danos como estratégia educacional na sociedade de consumo

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Há uma questão que qualquer pesquisador, ao encarar o tema drogas, não deveria ignorar: as drogas têm uma relação íntima com a humanidade e a acompanham desde o surgimento de sua história. Para compreender tal questão, recorremos a M. Sodelli, que aponta, com base no existencialismo de Heidegger, que há duas condições ontológicas fundamentais para o ser humano: ser mortal e ser livre, que são vivenciadas por meio do sentimento de angústia. Freud, apesar de sustentar uma linha de pensamento distinta da supracitada, converge para a existência de uma condição ontológica de sofrimento e afirma que abandonamos nossos instintos e deixamos de lado nossos desejos para a vida mais protegida em sociedade: o ser humano vive então um inevitável mal-estar.

Assim, a alteração do estado da consciência experimentada ao usar uma substância psicoativa oferece ao indivíduo a possibilidade de sair momentaneamente dessa condição ontológica. Em outras palavras, oferece ao ser humano uma alternativa a uma condição fundamental geradora de sofrimento. Portanto, qualquer proposta de cuidado ou prevenção aos riscos relacionados ao uso de substâncias psicoativas que ignore a indissolubilidade entre o ser humano e a sua busca por estados alterados e, portanto, pretenda o fim do uso de drogas, não resultará em êxito.

Temos, porém, que assumir que há importantes riscos nesse uso e que o uso se expressa de uma maneira particular na sociedade de consumo. Não devemos nos furtar da responsabilidade de buscar formas mais eficazes de dar cuidado a quem faz uso nocivo de drogas e de preveni-lo. Para tal, primeiro devemos compreender esse uso. Aqui concordamos com Sodelli ao afirmar que a droga, o indivíduo e o meio social devem ser levados em consideração simultaneamente, ou seja, não se pode captar o padrão do uso de drogas apenas pelas propriedades farmacológicas das substâncias.

A fim de pensar uma estratégia de prevenção aos riscos devido ao uso de drogas, destacamos o ensino escolar, pois abrange a quase totalidade dos indivíduos que estão em idade de ter o seu primeiro contato e também por ocupar grande parte de suas rotinas.

No Brasil, os programas de prevenção primária na educação datam da década de 1980 e coincidem com as primeiras propostas de redução de danos provenientes do aumento da incidência de HIV na população brasileira. Desde sua criação, foi feita em especial por médicos e policiais e buscou-se prevenir o primeiro contato de crianças e adolescentes com as drogas ilícitas. Podemos destacar aqui o Programa Educacional de Resistência às Drogas – Proerd, por abranger todos os estados brasileiros. O Proerd foi uma adaptação, importada dos Estados Unidos, do programa Dare (Drug Abuse Resistance Education). Ele chegou ao Brasil em 1992 e segue o efetivo de estratégias que surgiram a partir da Guerra às Drogas estadunidense na década de 1960.

A estratégia do programa Dare e do Proerd se enquadra no que Moreira e Andreoli vão chamar de “modelo de treinamento para resistir”, que pretende treinar os estudantes para resistir ao uso das drogas. Apesar de esse modelo não ter obtido resultados efetivos nos EUA, ainda assim foi importado por diversos países, incluindo o Brasil. Além da ausência de evidência de efetividade, uma crítica recorrente ao Proerd é a falta de adaptação cultural do modelo. Por exemplo, é importante nos perguntarmos se a figura do policial no Brasil carrega o mesmo conteúdo simbólico que nos EUA.

Levando em consideração os apontamentos que fizemos até aqui e partindo do princípio de que a erradicação das drogas é impossível, pois isso significaria mudar uma condição ontológica da humanidade, uma estratégia pedagógica preventiva para obter resultados positivos deveria caminhar em outro sentido, diferenciando-se de uma abordagem proibicionista. A abordagem pragmática que leva esses elementos em consideração nos campos da saúde e da educação chama-se redução de danos.

Como bem definem Trigueiros e Haiek, a melhor compreensão da noção de redução de danos (RD) é considerarmos o que o próprio termo dá a entender: reduzir os danos ocasionados pelo uso de drogas. A redução de danos se contrapõe à proposta de abstinência e à Guerra às Drogas, estratégias que idealizam ou prometem o fim das substâncias psicoativas como solução. Coerente com os princípios de uma política universalista, a RD se volta tanto para a prevenção quanto para o cuidado. No caso do usuário ativo de drogas, ela se volta para o aconselhamento, e dá a devida importância à aproximação e à vinculação, levando-o a refletir sobre o uso, a conhecer melhor seus danos e, se assim desejar, a fazê-lo de maneira segura a fim de minimizá-los. A estratégia fundadora da redução de danos, e mais conhecida, é a distribuição de seringas e agulhas descartáveis como forma de evitar contaminações decorrentes do uso de drogas injetáveis. Ela foi ampliada quando esses usuários passaram a ser vistos também como membros de uma comunidade e que, portanto, se relacionam, trabalham, têm necessidades outras e são dotados de direitos e deveres. Desde então o foco deixou de ser somente os usuários, mas também seus parceiros sexuais e a comunidade, como forma de ampliar a prevenção.

Seguir por essa via no âmbito escolar significa estabelecer a possibilidade da construção permanente de uma rede de cuidado entre o professor e o aluno. Deixar de lado o controle e a proibição tem resultados sobre a prevenção, pois passa ao diálogo e à ascensão de novas questões. Nessa estratégia, é o próprio aluno que vai buscar formas de reduzir os danos possíveis do uso de drogas. O professor, nesse caso, não está na função de simplesmente determinar a forma de prevenção, mas sim de estimular a reflexão. Essa estratégia caminha com uma pedagogia que vise o fortalecimento para tomadas de decisão enquanto sujeito de sua existência, e o uso ou não da droga entra como mais uma decisão na sua trajetória de vida.

Os pensamentos do educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997) seguem na mesma linha, convergindo com a estratégia de redução de danos no sentido de que, para ele, educação é essencialmente comunicação e diálogo. Mais do que simplesmente transferência de saber, o processo de educar é um encontro de sujeitos que buscam a significação dos significados. Notemos que tal forma de encarar a educação se alinha com a compreensão de acolhimento ao sujeito, imprescindível à redução de danos. Freire dá importante atenção ao termo conscientização, que para ele se relaciona necessariamente com ação, relação entre o pensar e o atuar, e é o desvelar da razão de ser das coisas. A conscientização se dá mediante um movimento dialético entre a reflexão crítica sobre a ação e a práxis. Freire considera que a conscientização implica que os indivíduos assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo, ou seja, não consiste em uma simples mudança de opinião sobre a realidade, uma mudança na subjetividade de cada indivíduo que deixa intacta a realidade. A conscientização supõe que pessoas se transformem pelo processo de mudança de suas relações com o ambiente ao seu redor e, acima da tudo, com os outros. Essa é a práxis humana, ou seja, a união indissolúvel entre a minha ação e a reflexão que posso fazer sobre o mundo. A conscientização, portanto, torna-se um processo pelo qual o sujeito ultrapassa a esfera espontânea de apreensão da realidade para alcançar uma esfera crítica na qual a realidade se dá como algo conhecido e sobre o qual se assume uma posição epistemológica.

A RD, portanto, é um recurso que leva em consideração a inevitabilidade do encontro humano com as drogas e procura minimizar o seu impacto por meio do diálogo e da valorização do encontro ontológico que pode se dar no contato pessoa a pessoa. Suas bases se aproximam do pensamento freireano e se organizam dentro de uma perspectiva que extrapola o mero princípio normativo de um mestre que indica a seus aprendizes como estes devem proceder. Mais do que isso, a redução de danos procura escapar da lógica da sociedade de consumo – e aqui falamos do consumo tanto de bens lícitos quanto ilícitos, já que são duas faces de um mesmo mercado, marcadas somente pelas alterações de consciência do que é considerado “aceitável” ou não dentro de uma visão cultural predominante.

Assim sendo, concluímos este breve texto com a afirmação de que é necessário discutir de forma mais aprofundada as relações entre a redução de danos e a educação como alternativas à lógica do consumismo na contemporaneidade. Isso não é fácil, dada a hegemonia de uma visão sobre as drogas que é marcadamente eivada de valores morais e preconcepções. Mesmo assim, ou justamente por isso, afirmamos, à guisa de conclusão – pois o tema não se esgota em tão poucas linhas –, que essa é uma discussão interdisciplinar a qual não devemos nos furtar a enfrentar.

 

 

Autores: Luís Fernando Tófoli, Ed. Carlos Faria, Pedro Henrique Faria. Publicado originalmente em “Revista Espaço Ética: Educação, Gestão e Consumo”, Dezembro de 2014.