A família como ponto chave no tratamento de dependentes químicos

Tempo de leitura: 11 minutos

Apesar da inclusão da família no tratamento de dependentes químicos ser consideravelmente estudada, não existe, no entanto, dentre as várias propostas, uma que seja (ou sirva de) consenso sobre o tipo de abordagem a ser utilizado.

A literatura tem concluído que a terapia familiar e de casal produzem melhor desfecho quando comparada com famílias que não são incluídas no tratamento. A partir desta linha de raciocínio, três modelos teóricos têm dominado a conceitualização das intervenções familiares em dependência química:

  1. o modelo da doença familiar,
  2. o sistêmico e
  3. o comportamental.

O primeiro, o modelo de doença familiar, teve origem nos Alcoólicos Anônimos em meados de 1940 e considera o alcoolismo ou o uso nocivo de drogas como uma doença que afeta não apenas o dependente, mas também a família. A princípio, este modelo descreve a criança que cresce em uma família que possui histórico familiar de alcoolismo e como as suas expectativas influenciarão seu comportamento adulto. Mais recentemente, porém, estudos têm focado que a doença do alcoolismo manifesta sintomas específicos nas esposas e companheiros de dependentes químicos, dando origem ao conceito de codependência, embora este tenha recebido críticas. Este modelo envolve o tratamento dos familiares sem a presença do dependente, como nos grupos de Al-Anon – grupos de auto-ajuda com o objetivo de entender os efeitos do consumo de álcool e drogas por parte dos dependentes nos familiares e como reparar o que a convivência com um dependente faz na família, seguindo os princípios do AA.

Até o presente, momento a produção científica é limitada neste tipo de abordagem. No entanto, as intervenções familiares baseadas neste modelo são muito comuns em programas de tratamento em dependência química e produzem forte impacto na opinião pública.

O segundo modelo, o sistêmico, passou a exercer grande influência entre profissionais de saúde no tratamento da dependência química em meados de 1970 a 1980. Basicamente, este modelo considera a família como um sistema, em que se mantém um equilíbrio dinâmico entre o uso de substâncias e o funcionamento familiar. Na perspectiva sistêmica, um dependente químico exerce uma importante função na família, que se organiza de modo a atingir uma homeostase (condição de relativa estabilidade da qual o organismo necessita para realizar suas funções adequadamente para o equilíbrio do corpo) dentro do sistema, mesmo que para isso a dependência química faça parte do seu funcionamento e muitas vezes, a sobriedade pode afetar tal homeostase. O terapeuta utiliza varias técnicas para clarificar o funcionamento familiar e promover mudanças de padrões e interações familiares.

Pesquisas sobre esta abordagem têm mostrado efeitos benéficos na interação familiar e consequentemente no comportamento aditivo.

O terceiro e último modelo, o comportamental, baseia-se na teoria da aprendizagem e assume que as interações familiares podem reforçar o comportamento de consumo de álcool e drogas. O princípio é que os comportamentos são apreendidos e mantidos dentro de um esquema de reforçamento positivo e negativo nas interações familiares. Inclui a teoria da aprendizagem social, modelo do comportamento operante e condicionamento clássico, incluindo os processos cognitivos.

Este modelo tem propiciado a observação de alguns padrões típicos observados nas famílias, tais como: reforçamento do beber como uma maneira de obter atenção e cuidados; amparo e proteção do dependente de álcool quando relata consequências e experiências negativas decorrentes do hábito de beber; punição do comportamento de beber. O tratamento tem como objetivo a modificação do comportamento da esposa ou das interações familiares que podem servir como um estímulo para o consumo nocivo de álcool ou desencadeadores de recaídas, melhorando a comunicação familiar, a habilidade de resolver problemas e fortalecendo estratégias de enfrentamento que estimulam a sobriedade. Vários estudos referentes a este modelo descreveram desfechos melhores e redução na utilização da substância de abuso.

Existe, também, a abordagem cognitiva-comportamental, que mescla técnicas da escola comportamental e da linha cognitiva e que reza que o afeto e o comportamento são determinados pela cognição que a família tem a cerca da dependência química, sendo esta cognição disfuncional ou não. O foco é reestruturar as cognições disfuncionais através da resolução de problemas, objetivando dotar a família de estratégias para perceber e responder as situações de forma funcional.

O impacto que a família sofre com o uso de drogas por um de seus membros é correspondente às reações que vão ocorrendo com o usuário. Este impacto pode ser descrito através de quatro estágios pelos quais a família progressivamente passa sob a influência das drogas e álcool:

Em um primeiro momento, prepondera o mecanismo de negação. Ocorre tensão e desentendimento e as pessoas deixam de falar sobre o que realmente pensam e sentem.

Em um segundo momento, a família demonstra muita preocupação com essa questão, tentando controlar o uso da droga, bem como as suas consequências físicas, emocionais, no campo do trabalho e no convívio social. Mentiras e cumplicidades relativas ao uso abusivo de álcool e drogas instauram um clima de segredo familiar. A regra é não falar do assunto, mantendo a ilusão de que as drogas e álcool não estão causando problemas na família.

Numa terceira fase, a desorganização da família é enorme. Seus membros assumem papéis rígidos e previsíveis, servindo de facilitadores. As famílias assumem responsabilidades de atos que não são seus, e assim o dependente químico perde a oportunidade de perceber as consequências do abuso de álcool e drogas. É comum ocorrer uma inversão de papéis e funções, como por exemplo, a esposa que passa a assumir todas as responsabilidades de casa em decorrência o alcoolismo do marido, ou a filha mais velha que passa a cuidar dos irmãos em consequência do uso de drogas da mãe.

O quarto estágio é caracterizado pela exaustão emocional, podendo surgir graves distúrbios de comportamento e de saúde em todos os membros. A situação fica insustentável, levando ao afastamento entre os membros gerando desestruturação familiar.

Embora tais estágios definam um padrão da evolução do impacto das substâncias, não se pode afirmar que em todas as famílias o processo será o mesmo, mas indubitavelmente existe uma tendência dos familiares de se sentirem culpados e envergonhados por estar nesta situação. Muitas vezes, devido a estes sentimentos, a família demora muito tempo para admitir o problema e procurar ajuda externa e profissional, o que corrobora para agravar o desfecho do caso.

Crescer em uma família que possui um dependente químico é sempre um desafio, principalmente quando falamos do contato direto de crianças e adolescentes com esta realidade. Filhos de dependentes químicos apresentam risco aumentado para transtornos psiquiátricos, desenvolvimento de problemas físico-emocionais e dificuldades escolares. Dentre os transtornos psiquiátricos, apresentam um risco aumentado para o consumo de substâncias psicoativas quando comparado com filhos de não dependentes químicos, sendo que filhos de dependentes de álcool têm um risco aumentado em quatro vezes para o desenvolvimento do alcoolismo. No entanto, também é um grupo com maior chance para o desenvolvimento de depressão, ansiedade, transtorno de conduta e fobia social.

Em relação ao desenvolvimento de problemas físico-emocionais, é predominante a baixa autoestima, dificuldade de relacionamento, ferimentos acidentais, abuso físico e sexual. Na maioria das vezes os filhos sofrem com uma interação familiar negativa e um empobrecimento na solução de problemas, uma vez que estas famílias são caracterizadas como desorganizadas e disfuncionais. Aproximadamente um a cada três dependentes de álcool tem um histórico familiar de alcoolismo e a probabilidade de separação e divórcio entre casais é aumentada em três vezes quando esta união se dá com um dependente de álcool. Fatores como falta de disciplina, falta de intimidade no relacionamento dos pais e filhos e baixa expectativa dos pais em relação à educação e aspirações dos filhos também contribuem para o desenvolvimento de problemas emocionais, bem como o consumo de substâncias psicoativas.

Como já mostramos aqui, estudos sobre violência familiar retratam altas taxas de consumo de álcool e drogas, sendo que filhos geralmente são as testemunhas da violência entre o casal e família, e por vezes alvo de abusos físicos e sexuais. Esta população também está mais frequentemente envolvida com a polícia e com problemas legais quando comparados com filhos com ausência de pais dependentes químicos.

No que tange as dificuldades escolares, filhos de dependentes de álcool apresentam menores escores em testes que medem a cognição e habilidades verbais uma vez que a sua capacidade de expressão geralmente é prejudicada, o que pode dificultar a performance escolar, em testes de inteligência, empobrecimento nos relacionamentos e desenvolvimento de problemas comportamentais. Este empobrecimento cognitivo em geral se dá pela falta de estimulação no lar, gerando dificuldades em conceitos abstratos, exigindo que estas crianças tenham explicações concretas e instruções específicas para acompanhar o andamento da sala de aula.

Apesar de seu estado de risco, é importante salientar que grande parte dos filhos de dependentes de álcool é acentuadamente bem ajustada, e por tal uma abordagem preventiva de caráter terapêutico e reabilitador pode ser de vital importância no desenvolvimento saudável de filhos de dependentes químicos.

A American Society of Addiction Medicine propõe três fases para o tratamento de famílias de dependentes químicos, sendo que o nível de intervenção varia de acordo com a meta de tratamento estabelecida, bem como as necessidades da família.

A primeira fase tem como objetivo o dependente a atingir a abstinência. Para tal é importante auxiliar as pessoas a assumir a responsabilidade sobre seus comportamentos e sentimentos. Por vezes, alguns membros podem ser atendidos conjuntamente, enfatizando a diminuição da reatividade do impacto de um familiar nos outros. Ao pensar no modelo de doença, nesta fase é trabalhado o conceito de codependência.

A segunda fase foca em identificar padrões disfuncionais na família como um todo, tanto na família de origem, quanto da família de procriação. Nesta fase é importante retomar rituais familiares e conforme o grau de dificuldade, o encaminhamento para uma psicoterapia familiar especializada pode ser realizado.

A terceira e última fase é definida como uma nova fronteira no tratamento da dependência química, sendo uma das áreas menos exploradas e talvez uma das mais controversas. Muito tempo após a cessação do consumo de substâncias, alguns relacionamentos continuam desgastados. Nesta fase o tratamento tem como meta aumentar a intimidade do casal e a participação de ambos no processo é fundamental.

É importante ressaltar que a diversidade do atendimento familiar também se refere ao processo, havendo diferenças entre as famílias que recebem psicoterapia familiar, daquelas que esporadicamente são atendidas dentro do tratamento do dependente químico.

Muitos fatores de diversas etiologias contribuem para o desenvolvimento da dependência química, no entanto, a organização familiar mantém uma posição de destaque no desenvolvimento e prognóstico do quadro de dependência química. Neste sentido, a abordagem familiar deve ser considerada como parte integrante do tratamento e um programa bem sucedido é essencial para um desfecho favorável. Daí a necessidade de se especificar o tipo de intervenção de acordo com a meta do tratamento e as necessidades e capacidades da família, evitando adiantar-se a prontidão e motivação da mesma para a mudança.

 

Fonte: Clínica Dr. Shirley de Campos