O jogo sujo da propaganda tabagista disfarçada e ilegal

Tempo de leitura: 5 minutos

Já sabemos que quase a metade dos fumantes brasileiros diz querer largar o cigarro, mas uma das barreiras é a tentação provocada pelo marketing dos produtos – um problema que o Brasil ainda não conseguiu resolver. Aqui, apesar de a publicidade do tabaco ser proibida nos meios de comunicação desde 2000, ela ainda está presente nos pontos de venda na forma de iluminados, coloridos e atrativos displays, e a indústria tabagista pode realizar atividades promocionais e patrocinar eventos culturais e esportivos expondo suas marcas.

De acordo com o levantamento do Projeto Internacional de Avaliação das Políticas de Controle do Tabaco (Projeto ITC), 32% dos fumantes brasileiros afirmaram terem notado “frequentemente” ou “muito frequentemente” coisas que os estimulam a fumar nos seis meses anteriores ao questionário, de longe a maior proporção registrada nos 28 países participantes do projeto, com o segundo lugar, a Holanda, alcançando apenas pouco mais da metade deste índice (17%). Diante disso, 72% dos fumantes brasileiros, e 86% dos não fumantes, apoiam a proibição total dos displays de cigarros nas lojas, muitas vezes instalados junto a doces e outras guloseimas, chamando a atenção também de crianças, criticam os autores da pesquisa.

E o combate à propaganda se faz ainda mais necessário diante do relativamente baixo impacto dos alertas sobre os malefícios do fumo impressos nos maços de cigarros. Ainda de acordo com a pesquisa, apenas 48% dos fumantes brasileiros relataram terem notado “frequentemente” ou “muito frequentemente” as advertências no mês anterior, e menos ainda, 36%, responderam que estes avisos os fizeram pensar “muito” sobre os riscos à saúde do tabagismo.

Imagens fortes de problemas decorrentes do tabagismo vêm sendo utilizadas nas costas dos maços de cigarro no Brasil desde 2001, mas, segundo os especialistas, também se faz urgente levar tais imagens para a frente dos maços. Em países que fizeram isso, como a Nova Zelândia, Ilhas Maurício e Tailândia, o nível de percepção destes alertas dispara para 71%, 80% e 83%, respectivamente.

A Agência Nacional de Vigilância em Saúde (Anvisa) propôs nove modelos novos de advertências nas embalagens sobre os malefícios do tabaco para a saúde. “Você brocha e fica impotente consumindo esse produto” e “Você morre de câncer de pulmão e enfisema consumindo este produto” são algumas destas novas propostas que esbarram, claro, no interesse das grandes indústrias tabagistas.

Que, aliás, parecem estar usando as redes sociais de modo suspeito para divulgar seu produto.

Em outubro deste ano, fotos no Instagram mostraram influenciadores com cigarros em diferentes situações, numa campanha supostamente realizada pela fabricante de cigarros Souza Cruz. Em comunicado, a empresa afirmou que “cumpre fielmente a legislação brasileira. Iniciativas realizadas pela empresa junto ao seus consumidores estarão sempre relacionadas exclusivamente à exposição dos produtos nos pontos de venda e respectiva comercialização, conforme autorizado por lei”. Mas o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) está investigando o caso, já que os posts, ao não se revelarem como anúncios ou “patrocinados”, também estariam infringindo a regulamentação do setor, que determina que postagens em rede social com caráter publicitário devem deixar sua natureza clara.

Nas fotos no Instagram, jovens “influenciadores”, com perfis que possuem de 2 mil a 100 mil seguidores, começaram a aparecer com cigarros repetidamente e sempre com uma mesma hashtag – #aheadbr. Algumas citam também o perfil @ahead.br, uma plataforma que diz ser “uma rede que conecta jovens empreendedores, apoia iniciativas e inspira novas experiências na moda, música e design”. O perfil da Ahead.br no Instagram foi criado em agosto, o que coincidiria com o começo das negociações entre marca e agência. Desde então, segundo pessoas ligadas ao projeto, a Ahead.br tem promovido festas com esses jovens influenciadores onde cigarros da mesma marca divulgada nas fotos foram distribuídos gratuitamente. Algo que seria ilegal também. A mesma lei que proíbe anúncios de cigarros estabelece que eles não podem ser dados como brindes ou amostras, vendidos de maneira avulsa ou combinados com outros produtos.

Desde o ano 2000 a indústria tabagista tenta aproveitar as brechas de interpretação da lei. Os fabricantes alegam, por exemplo, que a internet (o e-commerce) é ponto de venda, não meio de comunicação, e poderia ser local de anúncios. A Anvisa precisou baixar uma resolução garantindo que a internet era meio de divulgação. Desde então, marcas de cigarro buscam formas criativas para divulgar seus produtos no ponto de venda.

Entre novembro de 2012 e janeiro de 2013 a marca de cigarros Marlboro, da Philip Morris, testou se uma frase ou imagem no espaço limitado do display de venda (ou ao lado da tabela de preços) poderia ser considerada um anúncio. Numa campanha global, a empresa colocou frases do tipo “vou conquistar minha liberdade”, ao lado de imagens de jovens no próprio display onde os cigarros eram oferecidos no ponto de venda. O Conar alertou a empresa sobre a infração. Em 2014, o Procon multou a marca em mais de 1 milhão de reais. A Philip Morris Brasil recorreu, mas foi condenada.

Desde então a Anvisa está analisando embalagens e displays de venda e o modo como eles podem acabar virando publicidade. A ideia é que o Brasil siga protocolos internacionais e adote uma embalagem padronizada e despersonalizada, que tiraria o caráter “anunciativo” do logo da marca. Algo que já é feito em países como Reino Unido, França e Austrália.

E não é difícil entender porque as marcas do ramo visam o público jovem.

Documentos internos de grandes empresas, confiscados durante litígios e tornados públicos pela ONG americana Campaign for Tobacco-Free Kids, mostram que crianças e adolescentes são o alvo das marcas. As campanhas são pensadas para eles. Não à toa, o tabagismo é considerado doença pediátrica por atingir jovens com menos de 18 anos.

Além do Conar, tanto o Ministério Público (federal ou estadual) quanto o Procon e a Anvisa podem investigar a ação da Souza Cruz e verificar se houve irregularidades. Se ficar comprovado que houve campanha, todos os envolvidos – da marca à agência de publicidade, passando pelos contratados que publicaram as fotos no Instagram – podem acabar respondendo na Justiça.

 

Fonte: O Globo