Coisas que se aprende com dependentes químicos em busca de recuperação

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Ouvi dizer – e concordo – que hoje os dependentes químicos são como os leprosos no tempo histórico de Jesus. A escória da sociedade, a vergonha, a impureza profunda, o castigo de Deus. Ao prestar serviços administrativos em uma casa de recuperação para dependentes químicos aprendi sobre o assunto e, para minha surpresa, também aprendi muito sobre mim mesma. Não que eu seja ou tenha sido dependente de qualquer forma, mas a dependência química e seus dilemas têm muito mais a ver com nossas vidas cotidianas do que gostaríamos de reconhecer.

Primeiro: buscar informação, ela é poderosa e essencial.

Aprender sobre as drogas, sobre a doença, sobre a sociedade nesse contexto, sobre as políticas, sobre serviços prestados pelo governo, sobre o estado da arte no tratamento da adicção, sobre terapias, sobre metodologias e abordagens, sobre clínicas e casas de recuperação, sobre tudo! Quanto mais o adicto tem informação, mais ferramentas internas ele adquire para controlar o anseio por prazer imediato, para identificar gatilhos, para criar estratégias funcionais e voltar a viver em sociedade. Informação também é essencial para a família. Quanto mais ela aprende, mais saúde, alegria e força. Menos egoísmo e desespero, mais amor e domínio da situação. Quanto mais a sociedade aprende, mais reconhecimento e fomento às boas políticas. O adicto, a família e a sociedade precisam de informação. Dito de outra forma, é impossível evitar, enfrentar (e vencer) o problema social crônico em que a dependência química se tornou na nossa sociedade, a não ser com informação e educação contínua. E isso não é nada demais, diga-se de passagem.

Desde menina me surpreende como revistas femininas vendem há séculos ensinando sobre os mesmos temas, saúde, emagrecimento, beleza, moda, etc. É a mesma coisa, precisa fazer parte das nossas vidas essa alimentação contínua da nossa consciência a respeito do problema e como enfrentá-lo.

Segundo: valorize relacionamentos funcionais, eles valem ouro mesmo quando dão muito, muito, trabalho para serem lapidados.

O relacionamento do adicto com seus colegas dentro de uma casa de recuperação é comprovadamente terapêutico. Com seus tutores e com a equipe de tratamento então, nem se fala. O relacionamento e as terapias em grupo são desgastantes e dão muito trabalho, levam a constantes confrontos e desafios, mas é o caminho a ser percorrido. Relacionamentos disfuncionais, por outro lado, devem ser identificados e tratados com objetividade cirúrgica, eles fazem mal e pioram o problema. A codependência, por exemplo, é um comportamento muito observado em pessoas próximas ao dependente, que desenvolvem ataduras emocionais ou dependências diversas em relação a ele. Via de regra, percebe-se que a família adoeceu e também precisa de tratamento.

Terceiro: existe um relacionamento muito especial dentre esses todos mencionados, que é o relacionamento com Deus.

Em um sentido concreto, a espiritualidade do adicto salva sua vida. Não pela operação mística de um milagre, mas pelo seu empoderamento real, pelo exercício da fé que permite ao dependente químico acreditar e se esforçar por algo que ele ainda não consegue ver, nem sentir, nem perceber por meio algum – uma vida familiar feliz e social produtiva. Dentro de uma casa de recuperação uma boa taxa de sucesso no tratamento fica entre os 50 a 70%. Sem garantias. É um processo delicado e sujeito a recaídas. Alguns encontram-se num estado tão degradado, ou num estado avançado de idade, que não há chance de recuperação e muito menos de reinserção na sociedade. Qualquer que seja a situação, mais ou menos grave, cultivar a espiritualidade é o caminho. Sete dos doze passos dos Narcóticos Anônimos – NA (inspirados nos doze dos Alcoólicos Anônimos – AA) trabalham o relacionamento do adicto com Deus. Aliás, o autor dos doze passos dos AA era presbiteriano, evangélico.

Cabe o alerta que, infelizmente, existe amadorismo no trato das coisas de Deus dentro das casas de recuperação. Muito por problemas de conflitos doutrinários, dogmas religiosos, falta de profissionais preparados, falta de recursos para remunerar profissionais nesse campo. Mas a espiritualidade levada a sério é fundamental. A espiritualidade bem desenvolvida é uma força potente, poderosa, positiva, que impulsiona o adicto durante o tratamento, e depois em toda sua vida.

Quarto: a assistência ao adicto deve ser profissional, de preferência com equipe que além de profissional é vocacionada, apaixonada pelo que faz.

Intervenções amadoras podem ser desastrosas. Haverá crises, problemas de relacionamento entre os internos, atritos entre membros da equipe, desafios na lida com as famílias, complicações médicas e complexidades psíquicas. O nível de stress é grande. Sem profissionalismo, a situação que já é complicada fica ainda pior. O tratamento deve ser multidisciplinar, integrando espiritualidade, psiquiatria, psicologia e terapias. Terapias comportamentais, por exemplo, dão ao adicto ferramentas para reconstruir comportamentos no lugar daqueles que se deseja abandonar, como vergonha excessiva, ataques de fúria, crises de ansiedade, entre outros.

Quinto: o problema da adicção têm raízes no caráter da pessoa.

São falhas de caráter, tais como a incapacidade de suportar a frustração, o imediatismo e a inveja, que acabam disparando a busca por compensações prazerosas artificiais que por sua vez levam ao uso e abuso de drogas. Portanto, o autoconhecimento é um dos grandes segredos do sucesso tanto na prevenção quanto no tratamento. No autoconhecimento reside a esperança de que famílias disfuncionais se reconheçam como tais, e procurem ajuda. No autoconhecimento a sociedade pode compreender sua responsabilidade para amar e cuidar de pessoas que necessitam de apoio e cuidados especiais. Particularmente, todos temos falhas de caráter, e a grande maioria de nós não enxerga nem trata essas falhas. Ter uma falha de caráter poderia parecer, até então, algo condenável e feio demais para ser perdoado ou aceito como algo comum e recorrente. Mas no universo do dependente químico, reconhecer uma falha de caráter é a esperança de eliminar a raiz cancerosa da alma e obter restauração e saúde permanentes.

A verdade é que todos temos falhas de caráter! Só que mais difíceis de enxergar e, por conseguinte, de tratar.  Observar como se dá o tratamento de caráter para salvar a vida de um dependente químico ajuda a ser uma pessoa mais autêntica, mais livre do perfeccionismo, dos rótulos, mais consciente de si mesmo e de suas responsabilidades.

Sexto: ninguém pode se considerar sozinho nessa luta.

Muitas políticas e ações do governo e da sociedade civil organizada surgem a cada instante, e são dignas de nota. Em todas as frentes, mas em especial na de educação quero mencionar um curso on-line oferecido pelo governo federal em parceria com a UNESP para capacitar equipes e voluntários que trabalham em casas de recuperação. O curso é gratuito, com mais de cem horas de carga horária, com material didático impresso enviado pelo correio a centenas de pessoas distribuídas pelo Brasil. Aqui em Brasília, um curso promovido pelo programa AME MAS NÃO SOFRA da Secretaria de Justiça do Distrito Federal – Sejus, também está fazendo sucesso. Ele tem como público-alvo os familiares e amigos do dependente químico e apresenta os diversos tratamentos e serviços disponíveis. As iniciativas do Instituto Independa, por exemplo, são outras formas louváveis de acessar apoio, conforto e orientação.

Finalmente, para voltar na questão dos leprosos, a luta contra os comportamentos disfuncionais do adicto é acirrada. Um texto fabuloso no blog do Nassif ataca duramente a meritocracia perversa em que se baseia toda nossa sociedade neoliberal e o mundo globalizado que dela surge. Os adictos personificam o “anti-mérito” por isso não há lugar para eles na sociedade. Tudo o que um adicto mais deseja é a aprovação e o respeito da sociedade, mas a sociedade também tem muito a aprender por eles – e com eles.

 

RACHEL HERINGER SALLES é administradora especializada em gestão pública e gestão de recursos humanos. Atual responsável técnica do Plano Estratégico da Saúde do Distrito Federal, é executiva no grupo Intelit Smart Group. Ama dedicar-se ao terceiro setor de modo geral, em especial sua igreja e tudo relacionado à drogadição.