Renato Russo, um poeta no fundo do copo

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“Para entender…” já contou neste artigo a respeito do envolvimento do cantor Renato Russo com o álcool.

Agora, passados mais de vinte anos, vem à tona relato inédito dos dias que o líder da Legião Urbana passou numa clínica de reabilitação para combater a dependência química e reencontrar o equilíbrio.

“Perdi vinte em vinte e nove amizades/ por conta de uma pedra em minhas mãos”, rezam os versos iniciais do álbum O descobrimento do Brasil, lançado pela Legião Urbana em novembro de 1993. Menos de seis meses antes, em abril do mesmo ano, Renato Russo dava entrada na clínica de reabilitação Vila Serena, no Rio de Janeiro, não só para se desvencilhar do álcool e das drogas, como também para mergulhar numa reflexão profunda sobre sua vida.

Os vinte e nove dias que o músico passou ali internado o marcariam profundamente, tanto em sua trajetória pessoal quanto em sua produção artística, conforme revelam as várias letras subsequentes que, a exemplo de “Vinte e nove”, se referem a essa experiência radical de reclusão.

Uma espécie de esporte que alguns dos incontáveis apreciadores da Legião praticam com afinco é tentar descobrir, por trás daqueles discos que eventualmente mudaram suas vidas, acontecimentos da breve existência de Renato Russo (1960-1996), mentor e líder da banda, o cara que punha os seus sentimentos nas músicas. Dois volumes chegam às livrarias para facilitar o trabalho de exegese.

O mais aguardado é “Só por hoje e para sempre — Diário do recomeço”, compilação de escritos de Renato ao longo dos 29 dias que passou, em 1993, na clínica Vila Serena, no Rio, para tratar-se do vício em álcool, heroína, cocaína e outras drogas — e que inspirariam as canções de “O descobrimento do Brasil”, álbum redentor que a Legião lançou no fim daquele ano (leia trechos do diário). O outro é o novo volume da série “O livro do disco”, dedicado a “As quatro estações”, álbum da Legião de 1989, escrito pelo pesquisador Mariano Marovatto.

O “Diário do recomeço” é o primeiro livro de escritos e desenhos inéditos de Renato, guardados pelo filho Giuliano Manfredini, lançado pela Companhia das Letras. O relato pega o artista no que ele próprio classificou como o seu “fundo do poço”: uma desilusão amorosa (com o americano Robert Scott Hickmon) e a subsequente descoberta de que era soropositivo colaboraram para que ele entrasse numa espiral de abuso de drogas, vexames públicos (como quando seguranças o retiraram violentamente do Canecão, já que ele insistia em entrar no camarim após show do trio inglês de rock progressivo Emerson, Lake & Palmer), culpa, ressentimento e solidão que culminaria, em 1992, com a decisão intempestiva de interromper a turnê que a Legião fazia para promover o álbum “V”.

Destruído física e emocionalmente, Renato entrou em Vila Serena para seguir o programa dos 12 passos dos Alcoólicos Anônimos e também o dos Narcóticos Anônimos (de onde vem o “só por hoje” presente no título do livro e que dá nome à canção de encerramento de “O descobrimento do Brasil”). Como parte do tratamento, o cantor escreveu o diário, em que abriu o coração, numa impiedosa autoanálise. Em relatos e reflexões sobre o mal que fizera a si mesmo e aos outros, ele falou francamente sobre sua condição homossexual, drogas, namorados, família e também sobre sua relação com companheiros de trabalho e amigos, alguns dos quais tiveram suas identidades ocultadas ao longo do processo de edição do “Diário”, que não foi escolhido por acaso para abrir a série de livros de arquivos do artista para a Companhia das Letras.

— Renato deixou vários diários que teremos de selecionar e organizar, mas não é o caso do diário da clínica, que já estava praticamente pronto e tinha uma unidade muito clara — explica Sofia Mariutti, a editora do livro. — A decisão de trocar alguns nomes por iniciais veio para proteger as pessoas citadas em situações de intimidade. O valor maior do diário não está no que o Renato diz dos outros, mas no que diz de si. E, mais ainda, não está nos eventos, mas no que podemos pescar de influências e momentos determinantes para o seu processo criativo.

— Meu pai queria que aqueles escritos viessem a público. Era um visionário e escrevia para o futuro. Nada mais natural, portanto, do que publicar os textos que ele escreveu justamente para esse fim — observa Giuliano. — Com seu espírito aberto, meu pai acreditava (e eu também acredito) que a descrição dos dias em que passou internado podem ajudar muita gente a superar momentos de dificuldades e questionamentos como os que ele vivia naqueles momentos. Foi uma atitude corajosa por parte dele. E eu compartilho essa atitude. Ao mesmo tempo, atendendo com outra preocupação do meu pai, preservamos a intimidade das pessoas, por iniciais.

Desenhos do cantor, trechos do diário na sua própria caligrafia e reproduções de fichas do plano de tratamento preenchidas por ele dão um toque pessoal e terno ao livro, em que é possível acompanhar o desnudamento do artista e a sua transformação, de temperamental astro do rock em um paciente de fato paciente, buscando a conexão com o Poder Superior, e engajado nas atividades comunitárias. Segundo a editora do “Diário”, isso é só o começo.

— Há uma infinidade de material no baú. São dezenas de cadernos, com vários diários, mas também folhas soltas com as letras definitivas, as letras durante o processo criativo, poemas, textos em inglês, desenhos — enumera Sofia Mariutti. — O Renato era extremamente organizado, sabia do legado que deixaria e guardava tudo. Até cadernos de escola. Esperamos ter novidades até o fim do ano.

Arquivista literário por formação, Mariano Marovatto também contou com o acesso a um acervo exclusivo para escrever o livro sobre “As quatro estações”: o guitarrista Dado Villa-Lobos pôs à sua disposição a totalidade das gravações da qual o álbum de 1989 foi compilado. E saiu dele também com o seu Renato desnudado.

— Era um disco que ele começou do zero, em que não sabia o que ia dizer. E, buscando novos caminhos, ele chegou a essas canções falando da homossexualidade e da Aids — diz.

 

PEDQ SERVIÇO:

Só por hoje e para sempre — diário do recomeço (para ler um trecho deste livro, clique aqui)

Renato Russo

Editora: Companhia das Letras • R$ 34,90

 

O livro do disco — As quatro estações

Mariano Marovatto

Editora: Cobogó • R$ 32

 

 

Fonte: O Globo