Lobos em pele de cordeiro

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Os Estados Unidos vivem uma epidemia de opiáceos (substâncias derivadas do ópio) tão devastadora quanto o boom da heroína do último terço do século passado. Uma crise de saúde que levou aquele país a declarar, na semana passada, uma emergência de saúde pública que tem deixado mais mortos que a guerra do Vietnã e do Afeganistão juntos, sem que um tiro fosse disparado.

Em 2007 a Purdue Pharma se declarou culpada de enganar o público sobre o risco de vício em OxyContin e foi obrigada a pagar uma multa de mais de US$ 600 milhões, um dos maiores acordos farmacêuticos da história dos Estados Unidos. Na ocasião, a Purdue reconheceu explorar os equívocos dos médicos sobre a força da oxicodona. Em documentos judiciais a empresa disse estar “bem ciente da visão incorreta de muitos médicos de que a oxicodona era mais fraca do que a morfina” e “não queria fazer nada” para que os médicos pensassem que a oxicodona era mais forte ou igual à morfina. Isso afetaria a posição única que a OxyContin “exercia entre os médicos”.

Nenhum Sacklers foi nomeado no termo. Na verdade, o nome de Sackler não apareceu em nenhum lugar no acordo. Na página da farmacêutica na internet, não há informações sobre seus fundadores e, entre os membros diretores, não aparecem mencionados integrantes da família que, por mais de 60 anos, gere a empresa.

Mas tudo começou no final do século 19 quando Arthur, Mortimer e Raymon Sackler, três irmãos psiquiatras do Brooklyn, fundaram em Greenwich Village, em Nova York, uma pequena empresa de medicamentos. Viram nela uma possibilidade de um negócio familiar e, em 1950, compraram, com os lucros, a Purdue Pharma, uma farmacêutica que, no início, gerava recursos com a venda de removedores de cera de ouvido, laxantes e o antisséptico de cor laranja iodopovidona, usado em cirurgias.

Foi a entrada de dinheiro da produção de analgésicos na década de 1980 que catapultou o negócio dos Sackler. Pouco menos de um século depois de sua fundação, a empresa era um gigante farmacêutico mundial e havia transferido sua sede para Stamford, em Connecticut.

No entanto, o grande êxito comercial veio em 1995, quando lançaram no mercado o OxyContin, um medicamento para a dor, com base em opióides, que era quase três vezes mais forte que a poderosa morfina. Naquele mesmo ano as autoridades dos Estados Unidos aprovaram o medicamento, e já em 2001 as vendas alcançaram US$ 1,6 bilhão, superior às vendas do Viagra, e representavam cerca de 80% da receita da empresa dos Sackler.

À medida que o consumo destes medicamentos aumentava nos EUA a fortuna dos Sackers disparava e o uso de opióides causava uma catastrófica epidemia com uma magnitude de mortes sem precedentes – a tal ponto do presidente Donald Trump se vir na obrigação de declarar emergência de saúde pública. E organizações como a Médicos para a Prescrição Responsável de Opióides e meios de comunicação norte-americanos – como The New Yorker, The New York Times, Enquire e Forbes – têm assinalado nos últimos anos o envolvimento da família Sackler nesta emergência.

Segundo uma investigação realizada pelo médico Brandon Marshall, professor de epidemiologia da Universidade de Brown, em Rhode Island, e publicada no American Journal of Public Health, desde a aprovação do OxyContin, várias indústrias farmacêuticas se engajaram em ações de marketing e “subornos” para convencer os médicos a prescrever opioides.

Outros tantos especialistas consultados pelas publicações The New Yorker e Esquire também argumentam que a campanha levada a cabo pela Pardue Pharma contribuiu para que a prescrição deste tipo de medicamento fosse menos rigorosa, aumentando o número de dependentes entre a população – somente em 2012, médicos prescreveram mais de 282 milhões de receitas de analgésicos opióides, incluindo OxyContin, Vicodin e Percocet, uma quantidade que equivale a quase um frasco para cada habitante dos Estados Unidos. Dados fornecidos pela Agência de Investigação e Qualidade de Assistência Médica dos Estados Unidos indicam que, no ano passado, mais de 60 mil pessoas morreram no país por overdose de opiáceos.

Mas quase ninguém associa o nome Sackler com a droga de sucesso de sua empresa. Os Sacklers escondem sua conexão com seu produto. Eles não o chamam de “Sackler Pharma”. Eles não chamam as pílulas de ‘Comprimidos Sackler’. Ou seja, os líderes da família geraram três dos grandes triunfos de marketing da era moderna: o primeiro é vender OxyContin; o segundo é promover o nome Sackler; e o terceiro é garantir que, no que diz respeito ao público, o primeiro e o segundo não têm nada a ver um com o outro.

O doutor Marshall assegura que as agressivas estratégias de marketing implementadas pela Purdue Pharma (e outras empresas), “para promover o tratamento de dores crônicas com opióides receitados e as táticas que minimizaram as informações sobre risco de dependência foram o fator chave da crise atual”.

De acordo com uma investigação realizada pelo Los Angeles Times no ano passado , a Mundipharma, outra empresa de Sackler, responsável por desenvolver novos mercados, está empregando uma série de táticas familiares em países como o México, o Brasil e a China. Na Colômbia, ainda de acordo com o LA Times , a empresa chegou a divulgar um comunicado de imprensa sugerindo que 47% da população sofria de dor crônica.

Inspirada pela investigação do LA Times, em maio deste ano uma dúzia de legisladores no Congresso dos EUA enviou uma carta bipartidária à Organização Mundial da Saúde (OMS), alertando que as empresas de Sackler se preparavam para inundar países estrangeiros com narcóticos legais. “Purdue começou a crise dos opióides que devastou as comunidades americanas”, diz a carta. “Hoje, a Mundipharma está usando muitas das mesmas práticas enganosas e imprudentes para vender o OxyContin no exterior”. Significativamente, a carta chama a família Sackler pelo nome, não deixando espaço para que o público se pergunte sobre as identidades das pessoas que estão atrás da Mundipharma.

A remoção do uso de opióides causa dores, vômitos e ansiedade inquieta. É um processo horrível para experimentar como adulto. E consideravelmente pior para os vinte mil bebês estadunidenses que emergem todos os anos dos úteros embebidos de opiáceos. Esses bebês quando, de repente, se separam do suprimento, choram incontrolavelmente. Sua pele está manchada. Eles não conseguem adormecer. Seus corpos são abalados por tremores e, no pior dos casos, convulsões. Frascos de leite os deixam perturbados, porque não conseguem manobrar os lábios com precisão suficiente para fazer a sucção. O tratamento vem na forma de gotas de morfina empurradas de uma seringa para a boca dos bebês. O desmame às vezes leva uma semana, mas pode durar até doze. É um processo desordenado e caro, tipicamente realizado na UTI neonatal, onde os recém-nascidos têm acesso limitado às mães.

A família Sackler é atualmente formada por 20 membros descendentes dos três irmãos fundadores da empresa farmacêutica, que já morreram – Arthur, o principal fundador do “império”, morreu em 1987, Mortimer, em 2010, e Raymond, no início deste ano. Mas os ‘filhos do OxyContin’, os herdeiros e legatários Sackler, são muitos e variados. Os descendentes de segunda e terceira geração de Raymond e Mortimer gastam seu dinheiro nas maneiras que esperamos dos ricos não tão ociosos. Notavelmente, vários fizeram das crianças o foco de seus negócios e empreendimentos filantrópicos.

Contudo, apesar das doações a iniciativas médicas, uma investigação do The Daily Caller assegura que a família nunca apoiou nenhum projeto para financiar a cura do vício em opioides, que a empresa farmacêutica dos Sackler ajudou a difundir.

 

Fonte: Esquire