Consumindo o próprio corpo

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Freud, em O mal estar na civilização, evidenciou o elemento trágico que marca a existência humana. É universal, para os seres falantes, a experiência de um estado no qual as garantias sobre a manutenção da própria vida ficam reduzidas às simples condições do acaso:

“O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução …; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens”.

Uma das possibilidades de atenuar essa condição de profundo desamparo citada pelo autor é através da intoxicação química. Ainda que seja uma forma grosseira, revela-se relativamente eficaz, no sentido de amortecer as preocupações da vida que sempre têm como pano de fundo a consciência sobre o estado de abandono à própria sorte, que constitui o elemento mais concreto da experiência humana.

As mulheres estão envolvidas com o fenômeno das drogas de diversas formas. O envolvimento vai além do ato de consumir ou traficar algum tipo de droga. As consequências do envolvimento com as drogas na vida e na saúde da mulher são diferentes, de acordo com características pessoais, o contexto no qual ela está inserida, com a droga utilizada e seu padrão de uso, resultando em implicações na saúde.

A intoxicação por álcool ou drogas altera o pensamento e leva as mulheres a um comportamento de risco. Segundo uma pesquisa americana, 60% das mulheres que estiveram sob a influência do álcool ou das drogas adquiriram uma doença sexualmente transmitida já que mantiveram relações sexuais desprotegidas, seja porque acreditavam na predestinação como fator determinante para evitar uma infecção pelo HIV/AIDS – além de buscar afetividade nos relacionamentos -, seja por estupro ou por prostituição.

Coordenada por Solange Nappo, a pesquisa “Comportamento de Risco de Usuárias de Crack em relação às DST/AIDS” realizada pelo Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas), da Universidade Federal de São Paulo com 80 mulheres usuárias de crack, indica que 62% delas se prostituem todos os dias para bancar o vício.

A entrada das mulheres no cenário do crack ocorreu em 2002, quando as primeiras usuárias apareceram em programas de reabilitação na cidade de São Paulo. “Para o negócio, a presença feminina foi interessante. A mulher pode se prostituir e prover o crack para si e parceiros”, afirmou Solange.

Casos como o da personagem Larissa, da minissérie “Verdades Secretas” da Rede Globo, interpretada de forma impressionantemente realista pela atriz Grazi Massafera, são mais comuns do que se possa imaginar. Na ficção, a ex-modelo se prostitui por 0,50 centavos e também é violentada por um grupo de usuários de drogas. Na vida real, tivemos recentemente o caso da também ex-modelo Loemy Marques. Conforme mostramos nesta matéria, loira, magra, com 1,79 metro de altura e olhos verdes, ela veio do interior de Mato Grosso para a capital paulista atrás do desejo de seguir carreira de modelo. Mas acabou chamando a atenção da mídia por viver na Cracolândia de São Paulo, onde se submeteu a tudo para manter o vício: inclusive vender o corpo.

No caso de usuárias que inicialmente não se prostituíam, a troca de sexo pela droga se tornou uma estratégia para obtenção da substância. Verifica-se a expansão do consumo de crack entre profissionais do sexo justificado pelo fácil acesso e baixo custo da droga, pela aceitação da troca do sexo pela droga, e pela preferência de clientes usuários de substâncias.

As que optam em viver em situação de rua em condições de pobreza, acabam se envolvendo com pessoas ou redes que se utilizam delas para a exploração sexual comercial ou para o consumo ou tráfico de drogas. Assim, a tentativa de organização e construção de uma forma peculiar de vida na rua, fora da violência de casa, pode se tornar definitiva, e a ruptura dos laços afetivos com seus familiares, por sua vez, podem as tornar mais vulneráveis a outros episódios de violência: a exploração sexual comercial, ainda que, para elas, a venda do corpo seja apenas uma entre inúmeras estratégias de sobrevivência para atender às necessidades básicas.

Uma vez na rua, o binômio drogas e prostituição apresenta-se como a nova referência, ou ainda, como um enunciado que caracteriza as relações nesse novo ambiente. O uso de drogas e a comercialização do próprio corpo estão estreitamente ligados, na medida em que o primeiro termo possibilita a entrega do corpo como mercadoria, isentando o sujeito de um aprofundamento reflexivo quanto ao que está entregando ao pagador. No entanto, para que possa desfrutar desse eficaz anestésico, necessita do pagamento que esse ato de comércio envolve, engendrando-se, assim, um ciclo que se retroalimenta.

As histórias relatadas pelas “Larissas” reais permitem uma conclusão acerca da vulnerabilidade atual e da necessidade de programas específicos que facilitem sua adesão e permanência no tratamento, com horários acessíveis, baixo umbral de exigências, atendendo às necessidades psicossociais e culturais de cada uma. Afinal, a droga, elemento estrutural no relato de todas elas, impõe-se por seu efeito medicamentoso: poder aguentar os imperativos que determinam de forma não só violenta, mas também trágica, a vida na rua sustentada pelo consumo do próprio corpo.

 

 

Fontes: Cebrid; Cidadania, verso e reverso; Journal of Adolescence e United Nations Programme on HIV/AIDS