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O Spotify é um serviço de streaming (algo como transmissão contínua) de música, podcast e vídeo mais popular e usado do mundo. Ele fornece acesso a mais de 30 milhões de músicas que podem ser navegadas ou pesquisadas por artista, álbum, gênero, lista de reprodução ou gravadora. Usuários podem criar, editar ou compartilhar playlists, compartilhar faixas em redes sociais ou fazer playlists com outros usuários.
No ano passado, o Spotify removeu uma lista de bandas que se identificavam com ideias ‘supremacistas brancas’, após serem consideradas de conteúdo racista pelo Southern Poverty Law Center, nos EUA.
Recentemente, aqui no Brasil, a estudante paraibana Yasmin Formiga começou uma manifestação nas redes sociais contra um funk cuja letra faz apologia ao estupro. Segundo pronunciamento da plataforma de streaming de músicas, foi solicitado à distribuidora responsável pelo hit que o título fosse retirado do catálogo.
Em 2016, Zila Sanchez, professora da Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp), já alertara a comunidade científica para o potencial efeito das letras de funk na violência sexual em baladas. “Sem essa compreensão e sem o desenvolvimento de intervenções sociais adequadas ao que temos vivido, não conseguiremos desconstruir a cultura do estupro em nosso país”, escreveu ela em sua página no Facebook.
Integrante do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) e do comitê internacional de diretrizes de prevenção da UNODC (Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime), Zila também defende que as bebidas alcoólicas representam uma questão de saúde pública, com foco no consumo entre os jovens.
Colega de Zila na Unifesp, a psicóloga clínica Francismari Barbin concorda que a música ajuda a construir a cultura da sociedade, o que facilita ao público associar a bebida alcoólica com diversão ou a cura de problemas. “Parece que a tarefa de mostrar o lado negativo da substância ficou basicamente a cargo dos técnicos de saúde”, escreveu ela em seu trabalho de especialização em dependência química A influência das letras de música sertaneja no consumo de álcool.
Estilo outrora dominado pela ingenuidade e pelo romantismo, a música sertaneja se deixou levar pela temática da ostentação, até então mais comum no funk, na qual quem brilha é quem pode bancar os caprichos – os seus e os dos outros. Carros de luxo, mulheres com pouca roupa e bebida alcoólica de todo tipo, em quantidades sem limite. Festas sem hora para acabar.
O reflexo está nas paradas de sucesso do gênero.
Em Triste e Alegre, a dupla sertaneja Guilherme e Santiago começa de forma objetiva: “Eu fico triste, alegre/Sem beber eu fico triste, bebendo eu fico alegre.” Em outro trecho, mais uma vez o consumo de álcool é valorizado: “Há felicidade num copo de bebida…”
E eles não estão sozinhos.
Jorge e Mateus afirmam, em Sosseguei: “Tô virado já tem uns três dias/Tô bebendo o que eu jamais bebi.” Simone e Simaria, em Meu violão e nosso cachorro, cantam que “Mas se a gente não voltar/Posso beber, posso chorar/E até ficar no soro…”, numa clara alusão ao coma alcoólico. Zé Neto e Cristiano dizem ao Seu Polícia que “Enquanto ela não voltar/Eu vou continuar/Me afogando no álcool…”. E, claro, Wesley Safadão convidando, em Camarote: “Agora assista aí de camarote/Eu bebendo gela, tomando Cîroc” (marca de vodka). Enfim, a lista é longa.
Isso porque ficar bêbado é visto de forma poética por muitos compositores. E faz tempo. Os veteranos Tonico e Tinoco já cantavam Pinga ni mim: “Pra curar o meu despeito/Vou meter pinga no peito/Sufocar meu coração/Nesta casa tem goteira/Pinga ni mim, pinga ni mim”, diz o refrão que se popularizou na voz do hoje deputado federal Sérgio Reis, que curiosamente é membro titular da Comissão de Seguridade Social e Família e diz concentrar todos os seus esforços parlamentares em defesa da saúde pública.
Quem é acostumado a beber diariamente e nunca assume o alcoolismo, com certeza deve achar perda de tempo discutir este assunto, argumentando que são apenas músicas. Acontece que não é só isso. É cultura popular. “Beber, cair e levantar”, conforme canta a banda Aviões do Forró, parece algo tão rotineiro que o brasileiro não percebe o mal que canções com letras desse tipo podem fazer, principalmente para adolescentes.
Que o diga o forrozeiro cearense Jujuba. Reconhecido como o “poeta dos playboys”, ele assina o sucesso Vó, tô estourado de Israel Novaes, onde ouvimos: “Dezoito anos, não queria nem saber/ Só beber, curtir e farrear/ E quando eu chego, logo eu boto é pra torar/Eu vou descendo caixa de Old Parr” (marca de whisky).
Não adianta o poder público se empenhar em fiscalizar estabelecimentos que comercializam bebidas para menores se a mídia faz apologia ao consumo descaradamente e sem restrição. Em atitudes como essas está a raiz do problema. O jovem acha que precisa beber ou fumar para ser respeitado entre seus amigos. E é levado a pensar assim, conforme já tratamos neste artigo.
No DVD “Ao vivo em Goiânia”, do goiano Thiago Brava, está o sucesso As mina pira (Amigo do Neymar), música que fala em carro, dinheiro, fama e bebida, elemento que parece fundamental para uma festa: “Desce um combo de Red/Uma garrafa de tequila/Que hoje eu tô pagando/Pra você e sua amiga/Aí as mina pira…”
No Brasil, o sertanejo universitário é a moda do momento. O boom aconteceu em 2012, quando o estilo, enfim, tomou conta das paradas de sucesso em todo o país. Agora, começam a aparecer reflexos dessa fama que colocam, literalmente, o ritmo no âmbito universitário: trabalhos acadêmicos como o do mestrado em Letras de Mariana Lioto, na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), desenvolveram a relação do gênero musical com o consumo de álcool no Brasil.
No estudo, Mariana analisou obras de 48 artistas do gênero sertanejo e apenas sete deles não tinham nenhuma música dentro do tema. Dentre as composições catalogadas, 243 faziam referência ao consumo de bebidas alcoólicas. Os campeões de citações são os veteranos João Carreiro & Capataz, com 19 letras, e João Neto & Frederico, com 17.
Segundo Mariana, a escolha do trabalho veio pelo incômodo que sempre sentiu ao ver as bebidas apresentadas nas músicas de uma forma diferente do que era comum em sua vida. Por ter problemas com bebida na família, a paranaense não fazia a relação que os compositores e os fãs dos sucessos costumavam fazer.
O trabalho mostra também que as mensagens de versos como “Tudo que eu quero ouvir: eu te amo e open bar”, de Michel Teló, e “É meu defeito, eu bebo mesmo”, de Fernando e Sorocaba, não são recorrentes em outros estilos musicais. Aliás, Fernando e Sorocaba gostam de cantar que estão “fazendo terapinga/Toda terça e quinta…”.
“Em outros gêneros — no rap, por exemplo — é fácil encontrar músicas que criticam o consumo abusivo”, nota Mariana.
Como citado no estudo, a dupla João Carreiro & Capataz é campeã quando o assunto é venerar o álcool. Em Conselho de amigo eles dizem a Leo e Giba para irem ao boteco esquecer uma paixão. “Vem com nós pro buteco, vem tomá pinga, enxê o caneco”, diz um dos trechos. E finalizam com uma orientação ainda mais assustadora e violenta: “Fica sofrendo por causa dela não/mete o pé na costela dela e mete pinga na guela.” Cantando Butecologia com o grupo Rhaas, a mesma dupla desvaloriza a faculdade em nome da cachaça: “Meu pai paga faculdade, tá querendo me formar/Veterinária, agronomia, eu não sei o que estudar/Tanto tempo na facul e o meu melhor resultado/Foi só butecologia que eu fui aprovado.”
Apontado como um dos expoentes do sertanejo do interior de São Paulo, o cantor Kelvin Araújo parece ser outro caso crônico. Nos bares da cidade, Terapia de bar e Até o Garçom Chorou são títulos autoexplicativos.
A bebedeira nunca resolveu nada. Nem na época de Vicente Celestino, autor de O ébrio, sucesso de 1936, quando dizia que tomava todas para esquecer “aquela ingrata” que o amava, mas o abandonou. Para especialistas, isso de usar o abandono de uma mulher para encher a cara é desculpa de alcoólatra, mesmo que o cidadão seja 99% anjo, perfeito. Na vida real, filhos e esposa que apanham dele diariamente não acham um pingo de felicidade naquele 1%…
Fontes: O Popular, O Globo & ZeMarcosBlog