Por trás da dependência, a ânsia pelo Eu superior

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Stanislav Grof é um psiquiatra tcheco nascido em Praga em 1931 e radicado desde os anos 1960 nos Estados Unidos. Um dos principais protagonistas da moderna pesquisa da consciência com mais de 40 anos de experiência em pesquisa dos estados incomuns de consciência e seus potenciais curativos, Grof iniciou sua pesquisa ainda na antiga Tchecoslováquia, no ano de 1956. Ele trabalhava então no Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Praga quando recebeu do Laboratório Sandoz, da Suíça, um kit com uma substância recém-sintetizada; o LSD. O laboratório queria sua opinião sobre o potencial que a droga oferecia para o tratamento dos distúrbios psíquicos.

Nas duas décadas seguintes ele coordenou mais de 4 mil sessões, nos quais testou a substância em milhares de voluntários. A investigação foi realizada no Instituto de Pesquisa Psiquiátrica da Tchecoslováquia, e, depois, na Johns Hopkins University, no Maryland Psychiatric Research Center e no Esalen Institute, dos Estados Unidos, onde Grof passou a residir a partir de 1967.

Nos anos 70, Grof criou o termo Emergência Espiritual, sendo por ele definido como:

“A evolução de uma pessoa para um modo de ser mais maduro, que envolve uma ótima saúde emocional e psicossomática, maior liberdade de escolha pessoal e uma sensação de ligação profunda com as outras pessoas, com a natureza e com o cosmos. Uma parte importante desse desenvolvimento é um despertar progressivo da dimensão espiritual na vida da pessoa e no esquema universal das coisas”.

Grof observou que, apesar da possibilidade da Emergência Espiritual ser uma característica inata aos seres humanos, quando ela é muito rápida e dramática, esse processo natural torna-se uma crise. Assim, ele identifica dois quadros de emergência espiritual:

Spiritual Emergence – sugerindo uma oportunidade de ascensão a um novo nível de consciência, emergência no sentido de “elevação”;

Spiritual Emergency – sugerindo uma crise, onde emergência tem o sentido de “urgência”.

Com relação a este segundo quadro, Grof acredita que seja “possível que para muitas pessoas, por trás da ânsia por drogas ou álcool, esteja a ânsia por transcendência e completude. Se assim for, a dependência de drogas ou álcool, bem como todos os outros vícios, podem ser em muitos casos uma forma de emergência espiritual”.

No livro Caminhos além do ego, Stanislav e Christina Grof, sua esposa, explicam melhor esta correlação. Acompanhe:

O vício difere de outras formas de crise transformadora pelo fato de a dimensão espiritual muitas vezes se esconder por trás da óbvia natureza destrutiva e autodestrutiva da doença. Em outras variedades de emergências espirituais, as pessoas defrontam-se com problemas devidos aos estados mentais espirituais ou místicos. Em contraste, ao longo do processo de dependência, muitas dificuldades ocorrem porque a busca de dimensões internas mais profundas não está sendo empreendida.

Os alcoólatras e outros dependentes descrevem sua queda nos abismos do vício como “bancarrota espiritual” ou “doença da alma”, e a cura de seu espírito empobrecido como “renascimento”. Como diversas emergências espirituais seguem essa mesma trajetória, é possível aprender muitas lições de assistência durante as crises de transformação com os programas bem-sucedidos no tratamento de abuso de álcool e drogas.

Para muitas pessoas, por trás da ânsia por drogas, álcool e outros tipos de dependência, está a ânsia pelo Eu superior ou Deus. Muitas pessoas que se recuperaram falam de sua busca incansável de algum pedaço desconhecido que faltava em suas vidas descrevendo como se dedicavam a uma busca vã, de substâncias, alimentos, relacionamentos, posses ou posições de poder e destaque numa tentativa de satisfazer uma ânsia insaciável. Em retrospecto, elas reconhecem ter feito uma trágica confusão, levadas a uma percepção errônea que lhes dizia que a resposta estava fora delas mesmas.

Alguns até descrevem seu primeiro drink e sua primeira droga como sua primeira experiência espiritual que tiveram, um estado em que as fronteiras individuais se dissolvem e a core cotidiana desaparece, levando-as a um estado de pseudo-unidade, conforme declara William James no seguinte trecho de As variedades da experiência religiosa:

“A influência do álcool sobre a humanidade deve-se indubitavelmente a seu poder de estimular as faculdades místicas da natureza humana, em geral reduzidas a pó pela frieza dos fatos e pela aridez crítica do período de sobriedade”.

Depois de chegar ao fundo de sua doença e entrar num programa de recuperação espiritual, os dependentes em convalescência costumam exclamar: “Era isso o que eu estava procurando!” Sua recém-conquistada lucidez, a ligação com um poder mais Elevado e com outros seres humanos oferecem-lhes o estado de união que eles buscavam, e o desejo insaciável diminui.

Para muitas pessoas, a dependência do álcool, de drogas e de outras substâncias é uma forma de emergência espiritual. Como ocorre em muitas outras emergências espirituais, a jornada do viciado até o fundo do poço e daí para a recuperação é muitas vezes um processo de morte e renascimento do ego.

Durante a morte do ego, quer ela seja devida a um episódio de despertar espiritual ou de chegada de um indivíduo ao fim de sua carreira de alcoólatra, tudo o que se é ou se foi – todos os relacionamentos e pontos de referência, todas as racionalizações e proteções – entram em colapso e a pessoa é deixada nua, sem mais nada a não ser o âmago do seu ser.

Desse estado de absoluta e terrível rendição, não há para onde ir senão para cima. Como parte do renascimento que se segue a essa morte devastadora, a pessoa se abre facilmente para uma existência espiritualmente orientada, durante a qual a prática ou o serviço se tornam impulsos essenciais. Muitas pessoas se surpreendem ao descobrir uma fonte constante de benevolência interior que lhes dá força e orientação. Elas chegam à percepção de que a vida sem a espiritualidade é trivial e pouco gratificante.

A chave para essa redenção é o fim da ilusão de que se pode controlar a própria vida a aceitação de auxílio vindo de um Poder mais Elevado.

É bom lembrar que, não por acaso, o segundo passo dos Doze Passos de Alcoólicos Anônimos trata, justamente, da crença em um poder superior.

 

Fonte: Unus Mundus Psicologia