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Desesperada com as ameaças recebidas de traficantes, uma mulher de 43 anos decidiu manter a filha de 17 anos, dependente química, acorrentada a um guarda-roupas, em Sorocaba, interior de São Paulo.
Também no interior de São Paulo, em Itapetininga, uma mãe se acorrentou ao filho de 17 anos para evitar que continuasse usando crack. Ela usou uma corrente de 6 metros para atar o filho pela perna e amarrar a outra ponta à sua cintura, até que conseguisse internação para o garoto.
Usuária de drogas, uma moradora de rua no Distrito Federal encontrou abrigo em um dos bueiros de Ceilândia Norte. Conhecida como “Dona Goreti”, ela mora na boca de lobo há sete anos. Segundo a própria moradora, ela trabalha pela vizinhança como lavadeira, vigiando carros ou fazendo faxina.
Para manter o vício, Andréia Mello Fernandes conta que agia sem limites. Vendeu uma casa por míseros R$ 200, traficou drogas, se prostituiu, derrubou três árvores de uma propriedade invadida e chegou a retirar, no meio da noite, uma camiseta de um time de futebol do corpo do filho. Tudo para conseguir dinheiro e comprar mais pedras.
Rafael Nunes era viciado em crack. Ele morava nas ruas de Curitiba até que uma fotografia mudou a vida dele. Divulgada numa rede social, a imagem circulou pelo país e lhe rendeu a alcunha de “Mendigo Gato”. A repercussão do caso, porém, foi mais recompensadora que o apelido. Rafael ganhou tratamento e a chance de uma vida digna. Agora, relembra a luta para se livrar das drogas.
Depoimentos de ex-usuários e casos como estes acima são boas estratégias para sensibilizar jovens sobre os riscos do consumo de álcool, maconha, cocaína e crack? Para a professora do departamento de medicina preventiva da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e do comitê internacional de diretrizes de prevenção da UNODC (Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime), Zila Sanchez a resposta é “não”.
Para a especialista, até mesmo uma palestra de um médico experiente tende a fazer mais mal do que bem quando o intuito é evitar esse tipo de consumo.
Para Zila, a prevenção ao uso de drogas é tema complexo, baseado em evidências científicas de sucesso e que foge ao senso comum. Assim, uma “palestra isolada sobre drogas pode aumentar a curiosidade dos jovens e estimular o consumo ao invés de diminuí-lo. Ações de prevenção têm de ser multicomponentes e de longo prazo”, explica.
A especialista concedeu entrevista ao jornal Folha de São Paulo, onde explica melhor este seu ponto de vista. Confira:
O que se previne: uso ou abuso de drogas?
Depende da população de que tratamos. Quando são adolescentes, é prevenção ao uso porque não temos evidência de que seja seguro usar drogas durante a fase da vida em que o sistema nervoso está ainda em formação. Quando são adultos, não posso dizer que haja um uso seguro, mas há um uso de menor risco, portanto, pode-se falar em prevenção ao abuso. A regra, no entanto, é falarmos em não-uso de drogas porque é o que prevê a lei.
Como se faz prevenção do uso de droga ilícitas, como o crack?
As pessoas têm muito medo delas por causa da aura da ilegalidade. Mas o que sabemos hoje é que dificilmente um adolescente vai começar a usar maconha, cocaína ou crack sem antes ter feito um uso abusivo de álcool ou de inalantes, como lança-perfume, loló e cola de sapateiro. Fica, portanto, difícil fazer prevenção focando nas drogas ilícitas e de menor consumo. O crack, por exemplo, atinge uma parcela mínima da população, enquanto o álcool cria muito mais danos sociais, que podem ser provocados por um único episódio de consumo. É quando a pessoa enche a cara, pega o carro e atropela alguém ou faz sexo sem camisinha e tem uma gravidez indesejada ou pega uma doença sexualmente transmissível. Os pais acham que beber faz parte do processo de crescimento e esquecem dos riscos. Além disso, quanto mais se retardar o primeiro contato do jovem com o álcool, menores as chances de ele fazer uso abusivo desta ou de outras drogas.
O álcool é, portanto, porta de entrada para outras drogas?
O conceito de porta de entrada não é mais usado. Diziam que o álcool era a porta de entrada, como se todo mundo que o usasse migrasse para o consumo de drogas ilícitas – e isso não é verdade. Mas o inverso é verdadeiro: o cara que está usando crack e cocaína já fez uso abusivo de álcool. Os programas de prevenção, portanto, têm de falar de várias drogas, sem focar aquelas ilícitas, mas as chamadas drogas de experimentação, em especial no álcool.
Como se faz política de prevenção ao uso de drogas, então?
Primeiro, com atividades sistemáticas que trabalham habilidades de vida nas crianças e adolescentes para que façam melhores escolhas. Esse tipo de programa deve ser feito nas escolas porque é a forma de atingir o maior número de crianças e adolescentes possível de maneira custo-efetiva. É barato porque a criança e o adolescente já estão lá e já têm vínculo com os professores. São de 12 a 15 workshops por ano, de uma hora cada, baseados em eixos que reduzem os fatores de risco e aumentam os fatores de proteção, focando nos aspectos psicossociais de cada indivíduo. Podem ser implantados pelos próprios professores treinados para isso. Isso está previsto na Política Nacional de Drogas, mas, como não há regulação, funciona apenas como sugestão.
O que são fatores de risco e de proteção quando se fala em uso de drogas?
Os principais fatores de risco são sociais, que têm de ser tratados pelo Estado –a miséria, a falta de emprego, a dificuldade de escolarização, renda mínima etc. Mas, em paralelo, os programas de prevenção trabalham aspectos psicossociais. Jovens inclinados a práticas antissociais são apresentados para os riscos que certos comportamentos promovem, o que faz com que eles se protejam mais. Fatores de proteção são autonomia, pensamento independente, resistência a pressão do grupo, informação honesta baseada em evidência científica sobre drogas, perspectiva de futuro etc. O jogo é reduzir aquilo que é risco e aumentar aquilo que sabemos que protege. E isso pode ser trabalhado desde a primeira infância.
Qual a eficiência desse tipo de programa?
Eles têm sido muito implementados nos EUA e Europa. Nos EUA, há programas para crianças focados em habilidades de vida cujos resultados são acompanhados cientificamente há 30 anos. A diferença entre o grupo de crianças e jovens que receberam esse programa e o grupo de controle é enorme e muito ampla: vai desde o menor uso problemático de drogas e envolvimento com o crime até o maior sucesso profissional. Apesar de não se falar de drogas, é um programa considerado preventivo de seu uso. No Brasil, começamos algumas tentativas nos últimos dois ou três anos junto ao Ministério da Saúde. Estamos em fase de implantação.
Toda iniciativa de prevenção é válida?
Não. Quando mal aplicadas, elas podem ser negativas. Por exemplo, uma palestra isolada sobre drogas pode aumentar a curiosidade dos jovens e estimular o consumo ao invés de diminuí-lo. Uma ação isolada, desconectada de outras ações de prevenção, em geral tem esse resultado. Outra coisa muito controversa é palestra de ex-usuário de drogas. Não é recomendado, inclusive pela ONU, porque o adolescente interpreta aquilo como um sucesso: ele fez isso, mas está ótimo, ganhando dinheiro para dar palestra. Não é o tipo de informação que você quer passar para esses jovens. Os programas têm de ser multicomponentes e de longo prazo.
Como avalia o caso de prevenção ao uso de tabaco?
A restrição à propaganda foi muito importante para a estratégia de redução no consumo de tabaco. É o que chamamos de prevenção ambiental: não-venda para menores de idade, controle de venda em estabelecimentos, taxação, controle de propaganda na mídia e em pontos de venda etc. Ao longo dos últimos 30 anos, o consumo de tabaco entre adolescentes caiu muito. Em São Paulo, por exemplo, foi de 20% para menos de 8%.
E qual o caso do álcool?
Há restrições muito singelas à propaganda de álcool, que ainda é muito agressiva. São peças que mostram que o álcool faz a pessoa se sentir melhor, ser mais aceita pelo grupo e resolver os problemas da sua vida. A maior parte da publicidade do álcool é de cerveja, a bebida mais consumida pelo brasileiro que, em grandes quantidades, causa intoxicação e danos.
E como isso influi no comportamento de quem bebe?
A indústria vai dizer que a propaganda não foca a criança ou o adolescente. Mas eles estão expostos a essa publicidade e não têm discernimento de que álcool é para consumo de maiores de idade ou que seu consumo não vai lhe trazer sucesso nem torná-lo mais aceito – ideias ventiladas pela propaganda de tabaco quando ela existia. O adolescente não entende que aquilo é ilusório. Sua interpretação é, portanto, mais perigosa.
Como é o consumo de álcool no Brasil em relação ao resto do mundo?
O país tem um consumo dentro da média mundial. O que está acima da média é a prática do “binge” entre adolescentes: beber cinco doses ou mais de álcool por episódio. Os adolescentes brasileiros estão entre os que mais bebem desse jeito no mundo. É um padrão de risco e isso assusta. A prevenção ambiental teria um impacto sobre isso porque esse consumo ocorre em bares, festas e baladas, o que é proibido. Está na lei, mas ninguém cumpre.
Fonte: Folha de São Paulo