A dupla conquista da “terra do gelo”

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A Islândia (algo como “Terra do Gelo”. Não à toa o nome do país em inglês é Iceland) fez história ao se classificar para a Copa do Mundo pela primeira vez depois de vencer a seleção de Kosovo por 2 a 0 e terminar na liderança do grupo I das eliminatórias europeias. O país de apenas 330.000 habitantes vai participar da Copa do Mundo de maneira inédita, depois de surpreender na última Eurocopa, quando eliminou a Inglaterra nas oitavas de final, mas caiu nas quartas. E foi a primeira vez que a Islândia disputou o torneio europeu.

Mas a Islândia também está fazendo história em outro campo: o da dependência química graças ao Youth in Iceland (Juventude na Islândia), um programa nacional de recuperação que envolvia diretamente os pais e as escolas. As raízes deste plano remontam a uma tese de doutorado escrita vários anos antes, em Nova Iorque, pelo professor norte-americano de psicologia Harvey Milkman.

Milkman trabalhava como residente no Hospital Psiquiátrico Bellevue de Nova York no início dos anos setenta quando, diz ele, “o LSD já estava na moda, e muita gente fumava maconha. Havia um grande interesse em saber por que as pessoas consumiam certas drogas”.

Em sua tese de doutorado, Milkman concluiu que as pessoas escolhiam a heroína ou as anfetaminas dependendo de como queriam lidar com o estresse. Os consumidores de heroína preferiam se insensibilizar, enquanto os usuários de anfetaminas optavam por enfrentar o estresse ativamente. Quando o trabalho foi publicado, Milkman entrou para um grupo de pesquisadores recrutados pelo Instituto Nacional sobre Abuso de Drogas dos EUA para que respondessem a determinadas perguntas. Entre elas, por que as pessoas começam a consumir drogas, por que continuam consumindo, quando atingem o limite do abuso, quando deixam de consumi-las e quando têm recaída. “Qualquer aluno da faculdade poderia responder à pergunta sobre por que começa: é que as drogas são fáceis de conseguir e os jovens gostam de riscos. Também é preciso levar em conta o isolamento e talvez a depressão”, afirma. “Mas, por que continuam consumindo? Por isso, passei à pergunta sobre o limite do abuso… e me iluminei. Os garotos podiam estar à beira da dependência inclusive antes de tomar a droga, pois o vício estava na maneira como enfrentavam seus problemas”.

Na Universidade Estatal Metropolitana de Denver, Milkman foi fundamental para o desenvolvimento da ideia de que a origem dos vícios estava na química cerebral. Os menores “combativos” procuravam ter “sensações intensas” e podiam consegui-las roubando calotas de carro, rádios e depois os próprios carros – ou através das drogas estimulantes. Claro que o álcool também altera a química cerebral. É um sedativo, mas primeiro seda o controle do cérebro, o que por sua vez pode suprimir as inibições e, em doses limitadas, reduzir a ansiedade.

“As pessoas podem se tornar dependentes de bebida, carro, dinheiro, sexo, calorias, cocaína… de qualquer coisa”, diz Milkman. “A ideia da dependência comportamental se transformou no traço que nos caracteriza”.

Em 1992, sua equipe de Denver obteve uma subvenção de 1,2 milhão de dólares (3,7 milhões de reais) do Governo para criar o Projeto Autodescoberta, que oferecia aos adolescentes maneiras naturais de se embriagar, alternativas aos entorpecentes e ao crime. Os cientistas pediram aos professores, assim como às enfermeiras e aos terapeutas de centros escolares, que lhes enviassem alunos. E incluíram no estudo meninos de 14 anos que não achavam que precisavam de tratamento, mas que tinham problemas com as drogas ou com crimes leves.

Antes disso, em 1991, Milkman foi convidado para falar sobre seu trabalho, suas descobertas e suas ideias na Islândia. Tornou-se assessor do primeiro centro residencial de tratamento de dependência de drogas para adolescentes do país, situado na cidade de Tindar. No início, Milkman viajava regularmente à Islândia para dar conferências. Suas palestras e o centro de Tindar atraíram a atenção de Inga Dóra Sigfúsdóttir, uma jovem pesquisadora da Universidade da Islândia. Ela se perguntava o que aconteceria se fosse possível utilizar alternativas saudáveis às drogas e ao álcool dentro de um programa que não tivesse o objetivo de tratar jovens com problemas, mas, sobretudo, de conseguir que eles deixassem de beber e consumir drogas.

Além da já citada Juventude na Islândia, que nasceu em 2006 após a apresentação dos já então extraordinários dados da Islândia numa das reuniões do Cidades Europeias contra as Drogas, as leis mudaram. Penalizou-se a compra de tabaco por menores de 18 anos e a de álcool por menores de 20. Proibiu-se a publicidade das duas substâncias. Reforçaram-se os vínculos entre os pais e os centros de ensino, mediante organizações de mães e pais, que deviam ser criadas por lei em todos os centros, juntamente com conselhos escolares com representação dos pais. A estes também foi pedido que comparecessem às palestras sobre a importância de passar muito tempo com os filhos, em vez de dedicar a eles “tempo de qualidade” esporadicamente, assim como falar com eles de suas vidas, conhecer suas amizades e ressaltar a importância de ficar em casa de noite. Além disso, foi aprovada uma lei que proibia que os adolescentes de 13 a 16 anos saíssem depois das 22 horas no inverno e da meia-noite no verão (a norma continua vigente).

Casa e Escola, a entidade nacional que agrupa as organizações de mães e pais, estabeleceu acordos que os pais tinham de assinar. O conteúdo varia dependendo da faixa etária, e cada organização pode decidir o que deseja incluir. Para os meninos a partir de 13 anos, os responsáveis podem se comprometer a cumprir todas as recomendações e, por exemplo, a não permitir que seus filhos realizem festas sem a sua supervisão, a não comprar bebida alcoólica aos menores de idade e a estar atentos ao bem-estar dos garotos.

Também aumentou o financiamento estatal para clubes esportivos, musicais, artísticos, de dança e outras atividades para oferecer aos garotos maneiras alternativas de se sentirem bem fazendo parte de um grupo, sem terem que consumir álcool e drogas. Os filhos de famílias de baixa renda receberam ajuda para participar das atividades. Em Reykjavik, onde mora um terço da população do país, o chamado Cartão do Lazer dá direito a 35.000 coroas (cerca de 1.030 reais) anuais por filho para custear atividades recreativas.

Será que um aumento significativo da porcentagem de jovens que participam de atividades esportivas pelo menos quatro vezes por semana teria outras vantagens, além de fazer as crianças crescerem mais saudáveis? Isso pode ter relação, por exemplo, com a vitória sobre a Inglaterra na Eurocopa de 2016? Ou com a histórica classificação para a Copa do Mundo da Rússia?

Inga Dóra Sigfúsdóttir, eleita Mulher do Ano da Islândia 2016, responde que “os estudos nos mostraram que tínhamos de criar circunstâncias nas quais os menores pudessem levar uma vida saudável, sem precisar consumir drogas porque a vida é divertida. Os jovens têm muitas coisas para fazer e contam com o apoio de pais que passam tempo com eles”.

Em suma, as mensagens – embora não necessariamente os métodos – são simples. Os fatores de proteção aumentaram e os de risco diminuíram – assim como o consumo de entorpecentes.

E, assim, a Islândia ocupa hoje o primeiro lugar no ranking europeu sobre adolescentes com um estilo de vida saudável.

Se vai ocupar o primeiro lugar na Copa, aí é outra história. Mas ousamos arriscar que será a queridinha da competição…

 

Fonte: Emma Young via Mosaic Science