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Segundo a advogada mineira Claudia Wild, a cantora Anitta representa (e muito bem) “a nossa indigência cultural e a falência total como nação, e sem a menor perspectiva de desenvolvimento. Ela é, inquestionavelmente, a musa do Brasil que deu muito errado. Musa da nossa sofrível educação e mentalidade”.
Já o produtor musical Arnaldo Saccomani usou o seu perfil no Facebook para detonar a drag queen Pabllo Vittar, afimando que ele “é a grande fraude da música brasileira e fruto da miséria cultural que assola o país”.
Wild e Saccomani não estão sozinhos em suas críticas. Então como explicar o sucesso destes artistas?
A resposta está em duas palavras: marketing e publicidade.
“Não, eu não culpo a Anitta, ela estava no local certo e na hora exata. Assim, aproveitou o bom momento”, escreve Wild. E é verdade. Para se tornar “Anitta”, Larissa de Macedo Machado passou por uma série de transformações, tanto em seu próprio corpo, quando no estilo musical. Desde que ficou nacionalmente famosa, em 2012, a moça já fez algumas intervenções cirúrgicas para alterar sua aparência, embora não goste de falar sobre o assunto. A lista inclui aumento dos seios, dos lábios, das bochechas, lipoaspiração e plástica no nariz. Modificações que a deixaram num padrão estético muito próximo de algumas das principais divas do pop mundial.
No entanto, as semelhanças não são apenas físicas. Em 2016, Anitta assinou com a agência WME, de William Morris, que assessora a carreira de superestrelas da música e do cinema, como Ben Affleck, Rihanna e o grupo Maroon5, por exemplo. Dois conceitos de marketing estão presentes na trajetória de todos eles: Co-branding e cross media. O primeiro, basicamente, significa “parceria” entre duas marcas. O segundo é a utilização de várias mídias diferentes para atingir um público-alvo.
Em tempos em que os artistas ganham mais com publicidade do que com música, Pabllo Vittar fez a lição de casa e seguiu os passos de Anitta – e com a vantagem de carregar a bandeira da diversidade, credenciando Vittar a aparecer em campanhas voltada a este público. Em uma ação inédita, por exemplo, o Ministério da Saúde inovou ao fazer campanha sobre o uso da camisinha dentro de um clipe da drag. Os trabalhos publicitários, porém, tendem a levar Pabllo Vittar cada vez mais longe – e para públicos que ele jamais pensou em atingir.
Arma poderosa, sempre pairando sobre nós e em toda a parte tal qual um fantasma, a publicidade usa e abusa de táticas cada vez mais desenvolvidas para captar dinheiro, custe o que custar.
A primeira finalidade da publicidade é dar a conhecer um determinado produto, repetindo com insistência o seu nome e as qualidades. Mas esta finalidade de dar a conhecer um produto nem sempre é verdadeira, porque exagera as suas qualidades e a sua eficácia, enganando o comprador. Afirmam-se muitas vezes excelentes capacidades, prometem-se efeitos infalíveis, mas o comprador frequentemente só encontra propaganda enganosa.
No século 20, por exemplo, a mensagem das propagandas de cigarro sempre foi muito clara: associava o produto a um estilo de vida glamoroso e moderno. Fumar era o mesmo que se afastar conservadorismo; era ter estilo próprio e independência – discurso visando principalmente o público mais jovem.
Esse tipo de associação se consolidou após a Segunda Guerra Mundial, quando a televisão e o cinema massificaram a comunicação social. Não é por acaso que uma das principais marcas de cigarro do mundo tem o nome de Hollywood. Segundo José Benedito Pinho, em seu livro O poder das marcas.
A princípio, as indústrias tabagistas tinham como principal alvo o público masculino e, assim, a imagem da mulher era utilizada exclusivamente como objeto de desejo, ao lado do cigarro. Por isso, não demorou para as marcas de cigarros enxergarem nos esportes uma excelente forma de dar visibilidade ao seu produto e, também, apoio a filosofia de vida que pregavam em seus filmes. Na Fórmula 1, por exemplo, as escuderias patrocinadas passaram a utilizar a cor da marca do cigarro nos seus carros: a McLaren era vermelha e branca devido ao Marlboro, a Lotus era toda preta para compor com o John Player Special, e assim por diante.
Logo, as empresas também criaram estratégias para o público feminino. Foi assim que surgiram os cigarros com filtros. Além dos jornais, das revistas e do cinema, novelas e músicas também ajudaram a cultivar o hábito de fumar. Não raro, era possível ver médicos fumando ou recomendando marcas.
E nem as crianças escaparam: na década de 1980, a marca Pan, por exemplo, produzia as famosas caixinhas de “cigarros de chocolates”, tendo na capa a figura de crianças fumando. E até o Papai Noel era garoto propaganda da marca Lucky Strike, recomendando os cigarros para combater a dor de garganta e tosse…
As primeiras restrições à propaganda de cigarros surgiram nos Estados Unidos, em 1969, quando a indústria tabagista foi vetada na mídia eletrônica. O primeiro país a bani-la completamente foi a Noruega, em 1975. Em seguida, vieram outros 26 países, como Finlândia, Nova Zelândia, Itália e França.
No Brasil, cada vez mais a indústria do tabaco vem tendo que se adequar a novas regulamentações. As entidades que funcionam sob o guarda-chuva do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), entre elas agências de publicidade, anunciantes e mídia, argumentam que a Constituição brasileira autoriza restrições a certos produtos, como cigarros, bebidas e medicamentos, mas não o banimento completo da publicidade.
No caso das bebidas, desde 2014 comerciais de cerveja e vinho em emissoras de rádio e televisão ficaram mais restritos no Brasil. Como todos os países podem melhorar a saúde pública regulando o marketing de bebidas alcoólicas para reduzir seu consumo e danos relacionados, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) desenvolveu novos princípios a serem considerados no desenvolvimento dessas regulamentações. A publicação da OPAS observa que uma proibição abrangente do marketing do álcool é provavelmente a única maneira de eliminar o risco de exposição para aqueles que mais precisam de proteção, como os jovens e outros grupos vulneráveis.
E é exatamente este grupo que está na mira de um relatório publicado esta semana pelo Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos. Intitulado O papel da mídia na promoção e redução do uso do tabaco, o documento não deixa dúvidas: a publicidade do tabaco aumenta o consumo do produto, principalmente entre crianças. Qualquer criança ou adolescente que tenha acesso a cigarros dentro de sua própria casa pode entrar no mundo tabagista. Isso a indústria do tabaco já descobriu – e usa completamente a seu favor, dirigindo a publicidade para a infância e a puberdade. Afinal, a venda de cigarros para menores de 18 anos é legalmente proibida, mas o consumo não é.
Aliás, o marketing pela legalização das drogas se agarra, entre outras coisas, justamente ao discurso de que o consumo das mesmas seria como um exercício de liberdade individual. Junte à esta ideologia a ideia falsa de que as “drogas leves” não causam danos à saúde. Há muitos anos, porém, inúmeros estudos científicos associam o consumo de cannabis à esquizofrenia, ao desenvolvimento de sintomas psicóticos e a um aumento do risco de comportamentos antissociais, ideação suicida, dificuldades no relacionamento interpessoal, consumo de outras drogas ilícitas, designadamente drogas injetáveis etc.
Mas o relatório do Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos também conclui que campanhas de mídia de massa para educar o público e proibições abrangentes sobre a publicidade e promoções do tabagismo são, de fato, eficazes para reduzir o consumo de tabaco.
A glamourização do cigarro foi contestada pela primeira vez de forma mais incisiva em meados da década de 1990. Pesquisas científicas mostravam cada vez mais relação entre doenças como câncer e enfisema pulmonar e o consumo do tabaco. Como se não bastasse, todos os três cowboys garotos-propaganda da marca Marlboro morreram de problemas relacionados ao tabaco. Em 1995, David McLean, que atuou nos anos 1960, morreu de câncer no pulmão. Wayne McLaren, que interpretou o famoso cowboy na década de 1970, morreu em 1992, após desenvolver, também, câncer no pulmão. Eric Lawson, um dos cowboys mais famosos das propagandas da marca na década de 1970, foi vítima de doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) – enfermidade que tem forte relação com o fumo.
Obviamente, a indústria tabagista sempre soube a respeito do câncer de pulmão provocado pelo hábito de fumar. Durante 40 anos isto foi escondido através da criação de um clima de controvérsia: o cigarro era prejudicial à saúde sim, mas conferia status e glamour aos seus usuários. Negava-se inclusive a possibilidade da nicotina causar dependência, fato este que hoje já é comprovado de maneira científica. E até os efeitos da abstinência do cigarro podem ser devastadores tanto quanto os efeitos de outras drogas ilícitas.
Entretanto, como já mostramos aqui, após quase vinte anos de batalhas judiciais, as grandes companhias de cigarros nos EUA foram condenadas pela Suprema Corte daquele país a exibir anúncios na mídia admitindo ter encoberto mortes causadas pelo tabagismo e colocado aditivos nos cigarros para torná-los mais viciantes.
As empresas fabricantes de cigarros, então, tiveram que demonstrar um certo interesse na saúde de seus consumidores e tomaram medidas no intuito de deixar claro todos os malefícios causados pelo hábito de fumar, não cabendo mais, portanto, a personificação do cigarro como artigo de luxo.
Sem o financiamento das grandes marcas de cigarro, até a imprensa mudou de tom e as reportagens vinculando cigarro e doença se tornaram mais frequentes. No cinema, ocorreu algo parecido: o cigarro quase não é mais visto.
Educar as pessoas ainda é a melhor ferramenta de marketing de todos os tempos. Cuidar das pessoas é o único marketing do bem possível. Mas se o ato de fumar, hoje, já não é mais sinônimo de boa vida, a indústria tabagista, mais uma vez, encontra uma brecha e cria planos para o que é chamado de “fim da linha do cigarro”: a Philip Morris, maior fabricante de cigarros do mundo, diz que pretende deixar de vender cigarros.
Será mesmo? Confira na segunda parte desta matéria, amanhã. Até lá!
Fontes: Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), Dex Group, José Benedito Pinho em O Poder das Marcas e G1