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A vida é como uma luta acirrada entre o bem e o mal. Pessimismo e otimismo. Vício e virtude… doença e recuperação. Em um lugar dramático desses de fronteira, onde alternam-se derrota e vitória, existem as Comunidades Terapêuticas levantando bandeiras e comprando brigas que ninguém mais quer comprar. Parece uma luta inglória já que sabe-se ser impossível exterminar de vez as drogas da sociedade. Mas a batalha travada não tem essa pretensão.
A peleja é diária e enérgica, palmo a palmo, por vidas que clamam por ajuda. Vidas desenganadas pelos próprios familiares, que dirá pela sociedade. A chance da vitória, mesmo assim, é real. Se dá nos limites dramáticos do que cada alma deseja e verdadeiramente quer lutar com todas as suas forças, agarrar as oportunidades, massacrar as falhas de caráter e livrar-se do mal, firmar-se no bem, nos bons hábitos e pensamentos funcionais. Daí em diante tudo pode florescer.
É um drama que como todo drama guarda certa beleza. Seus contrastes, limites, conflitos, aspectos críticos, segredos e movimentos despertaram meu interesse em certo momento da vida em que olhei para tudo isso e pensei, puxa, quero fazer parte dessa luta. Usar o que Deus me deu para fazer alguma diferença na vida dessas pessoas, no meu caso específico, na vida de pessoas que ajudam pessoas desenganadas. Meu foco como voluntária é o administrativo, os desafios de gestão das organizações que ajudam pessoas em situação de risco e vulnerabilidade. Em especial aqui, gestão de pessoas.
Percebi em três anos de dedicação que os gestores travam uma luta que eles mesmos não enxergam bem qual seja. Arrisco dizer que 90% assume a luta do adicto como se fosse sua própria sem perceber que é preciso um modelo de gestão que se possa aperfeiçoar ao longo do tempo. A prova disso é que buscam capacitação, quando buscam, nas áreas da saúde e do tratamento da dependência, negligenciando as próprias competências gerenciais. Como assim? Não precisam estudar gestão? Melhorar nada? Habilidades, conhecimentos, atitudes, competência? Hum… sei.
Existe um vício de pensamento neles e nos gestores de modo geral, que, uma vez de posse do poder, não é preciso mais pensar em técnica, inovação, desenvolvimento pessoal. O exercício do poder é algo inebriante, mesmo ou especialmente em campos de batalha. Não sei se existe uma decisão consciente dessa natureza, mas o fato é que se a organização é pequena então, e ainda de constituição familiar, pior ainda. É o caso das CTs. Falta entendimento das técnicas da administração, não há muito quem se interesse. Pensar nisso é como fazer um trabalho desagradável, dispendioso, de resultados incertos e, por tudo isso, no final das contas, desnecessário. Se conhecendo boas práticas de gestão já é difícil, gente de Deus, imagina sem conhecer nada. É uma precariedade semelhante à da ignorância, você não sabe que não sabe e por isso fica sem saber o que perde ou sofre por não saber. Complicado.
Também acontece que a trajetória dos líderes e gestores das CTs quase sempre é não convencional, ou seja, passa longe dos caminhos que ensinam e valorizam essas matérias. Quem por lá passa, almeja os cargos executivos das grandes corporações, ou pretende passar em concurso, ou algo pessoalmente mais vantajoso, e, enfim, a questão é que acaba tendo o coração posto em outros caminhos.
Agora independentemente de culpados ou chamados, existem consequências importantes para essa miopia da gestão no terceiro setor, como por exemplo, a dependência excessiva dos recursos e das diretrizes governamentais. As CTs vivem na dependência dos repasses do governo e fixam-se de forma excessiva nas deficiências do Estado, que são incontáveis, restando pouco esforço para explorar a liberdade de sua condição de organização social de direito privado. Eu escrevi no artigo passado sobre a importância e a alegria de delegar para usufruir justamente desse potencial humano criativo e inovador, capaz de fazer maravilhas do nada e superar obstáculos instransponíveis.
Uma outra consequência importante que vale a pena mencionar é a falta de preparo dos gestores para definir uma agenda positiva de aperfeiçoamento e fortalecimento institucional. Claro. Se as CTs preocupam-se, basicamente, em melhorar os serviços de saúde sejam eles os internamente prestados sejam os do sistema público de saúde, se elas compram todas as brigas políticas e normativas do Estado, sem olhar para a origem das CTs, lá para a essência do seu modelo de funcionamento, sem perceber o cenário mais amplo do empreendedorismo social, sem perceber em que consistem as boas práticas de gestão e o perigo dos vícios de gestão… sem querer reconhecer a grande revolução que acontece hoje no mundo com as comunicações digitais… fatalmente ficará empobrecida a agenda desse gestor no sentido de fortalecer sua organização e encontrar meios mais sustentáveis e impactantes de conquistar espaços de influência e recursos de trabalho.
Por exemplo, o Conselho Federal de Psicologia – CFP desfere duros golpes às CTs. Por quê? Resiste em reconhecer as muitas instituições que funcionam bem, e certamente não é por falta de entendimento político ou jurídico do arcabouço que as regulamenta. Se as leis e o histórico bem-sucedido das CTs é conhecido, não me parece ser esse o cerne da questão. Um ponto sensível é a institucionalização do sujeito, ou seja, o indivíduo recuperado no modelo de tratamento das Comunidades Terapêuticas ficaria limitado e condicionado ao ambiente social artificialmente construído na casa de recuperação. Fora desse ambiente, pensam eles, ele não consegue viver de forma produtiva.
É uma crítica aguda que coloca em cheque até mesmo a validade da relevância das CTs como agentes de recuperação no cenário da luta a favor da vida e contra a doença da adicção. Como resposta a esses questionamentos, o governo responde que os recursos destinados às CTs são restritos e não comprometem os recursos destinados ao SUS, que também exerce importante papel na rede de assistência ao dependente químico. Péssima resposta pois fica parecendo que as CTs são “um mal necessário”. Desqualifica elas, valida a crítica mediante a garantia velada de que os recursos nunca serão tão melhores do que já são.
Como se não bastasse enfrentar as malditas drogas e a falta de recursos, as CTs ainda enfrentam desafios dessa envergadura, discussões sem agenda positiva, conflitos de interesses. Como fazer frente a isso, e vicejar, sem um modelo de gestão? Como endereçar ações e soluções proativas, parcerias estratégicas e tudo o que a situação exige, sem uma certa dose de preparo, disciplina e competência? Como aproveitar críticas para serem ainda melhores do que já são? Como capitalizar pontos fortes e mitigar riscos? Ok!!! Entendi. Técnica demais essa conversa!
Então vamos a um último ponto, que é o da motivação dos gestores. Preparo e motivação andam juntos, lado-a-lado. A falta de preparo administrativo é um ponto a favor das drogas, e vários contra a recuperação. Energia, entusiasmo, intuição, dons e talentos, influência política, amigos, que maravilha é ter tudo isso. Mas, no cenário dessa luta, queridos amigos, o inimigo anda ao derredor e nossa armadura precisa estar completa. Técnica, planejamento, estudo, conhecimento, sustentabilidade, sucessão, pensar e agir para o longo prazo, são o outro lado da moeda da vitória. Um lado ao qual nós brasileiros estamos pouco afeitos, é verdade. Mas que eu saiba nessa batalha não existem fronteiras de nacionalidade, só aquela dramática linha que separa a vida ou a morte. Acreditar ou não. Melhorar ou piorar. Vamos melhorar gente, é isso aí.
RACHEL HERINGER SALLES é administradora especializada em gestão pública e gestão de recursos humanos. Atual responsável técnica do Plano Estratégico da Saúde do Distrito Federal, é executiva no grupo Intelit Smart Group. Ama dedicar-se ao terceiro setor de modo geral, em especial sua igreja e tudo relacionado à drogadição.