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Nossa sociedade passa por uma crise de valores. A ética e a espiritualidade trazidas pelas grandes religiões caíram em descrédito e o individualismo tornou-se uma “virtude”, transformando a felicidade na acumulação de bens e na satisfação imediata de desejos.
Valores humanos fundamentais para uma vida saudável e a elevação da consciência, como a compaixão, humildade e paciência, foram substituídas por leis e regras de comportamento social ditadas pela razão e pela ciência.
Em paralelo, intensificaram-se também os métodos para fugir da dor e de tudo o que incomoda, principalmente dos problemas causados pela nossa civilização, como a ansiedade, a depressão, a falta de sentido para a vida e a deterioração dos relacionamentos.
Por interesses financeiros aguçados, as drogas naturais se tornaram mais potentes e populares.
O consumo dessas substâncias esteve presente em toda história da humanidade, mas sempre ligado a rituais religiosos. Essas substâncias, dentro de contextos apropriados, seriam facilitadoras para a entrada do adepto em outros níveis de realidade. No entanto, psicologicamente, seu uso é equivalente, em um nível mais baixo, à sede espiritual do nosso ser pela totalidade, ou, simbolicamente, pela união da alma com Deus.
Assim, o melhor tratamento para um dependente químico é a experiência direta com o Poder Superior da maneira como ele o compreende. Essa é uma das premissas do Alcoólicos Anônimos (A.A.), como foi relatado numa carta de Bill W., um dos fundadores do A.A. e dependente químico em recuperação, ao psiquiatra Carl G. Jung (1875-1961), escrita em 23 de janeiro de 1961.
Essa história, pouco conhecida, conta como foi a recuperação do paciente de Jung conhecido como Mr. Rowland, e por que as circunstâncias que cercaram essa recuperação tornaram-se inspiração para regras fundamentais do A.A.
Jung disse a ele que não via esperanças para a cura de seu vício em tratamentos médicos ou psiquiátricos; e que a única forma dele se livrar da compulsão seria tornar-se o sujeito de uma genuína experiência espiritual ou religiosa.
Para Jung, o caminho correto e legítimo para essa experiência é a busca de uma compreensão de vida mais elevada. E, embora rara, essa meta pode ser atingida de três formas: pela ação da graça divina; pelo cultivo dos relacionamentos pessoais; e por uma educação mais elevada da mente e do espírito, utilizando técnicas de meditação, oração e estudo de textos sagrados.
Seguindo seu conselho, Mr. Rowland juntou-se ao Grupo Oxford, antigo movimento evangélico europeu que pregava a autovigilância, a confissão, a reparação e a doação pessoal a serviço dos outros. Eles também praticavam a meditação e a prece, intensivamente.
Nessas atividades, Rowland encontrou a experiência de conversão que finalmente libertou da compulsão de beber. E foi por intermédio de um amigo em comum que essa idéia chegou a Bill W.
Certo dia, no auge de seu desespero por conta das perdas causadas pelo álcool, Bill gritou:
– “Se existir um deus, que ele se mostre para mim”.
Segundo ele, imediatamente, uma iluminação de enorme impacto e dimensão o envolveu e seu desligamento da obsessão pelo álcool foi imediato. Ele havia se tornado um homem livre.
Durante essa vivência, surgiu a inspiração de fundar uma sociedade de alcoólicos em que cada um se identificasse com o outro e lhe transmitisse suas experiências. Como uma reação em cadeia, sua principal receita seria “spiritus contra spiritum”, ou seja, uma experiência espiritual verdadeira contra uma falsa impressão causada por substâncias.
Foi dessa série de acontecimentos surgiu o A.A. que ajuda a recuperar milhares de pessoas em todo o mundo.
Trecho da carta de Bill W. a Jung:
“Voltei então aos cuidados do Dr. Silkworth; onde pude tornar-me novamente sóbrio, ganhando assim nova visão sobre a experiência da libertação do meu amigo e novo enfoque no caso de Rowland H.. Livre mais uma vez do uso do álcool, passei a me sentir terrivelmente deprimido, o que me pareceu ser devido a minha inabilidade de adquirir qualquer tipo de fé. (…) Recaí na mais profunda depressão. Desesperado, então gritei: “Se existir um deus, que ele se mostre para mim”. Imediatamente, uma iluminação de enorme impacto e dimensão envolveu-me, uma coisa extraordinária (…). Meu desligamento da obsessão pelo álcool foi imediato. Senti que me havia tornado um homem livre. Logo em seguida a esta minha experiência recebi no hospital, (…) o livro de William James, “As Variedades da Experiência Religiosa”, livro este que veio me conscientizar que a maior parte das experiências religiosas, as mais variadas têm um denominador comum que é o colapso do ego, a sua queda no maior desespero. O indivíduo tem que se encontrar em uma situação extrema, frente a um dilema insolúvel. No meu caso esta situação, este dilema insolúvel nasceu da minha compulsão à bebida e um profundo sentimento de desespero mais ainda tomou conta de mim quando o meu amigo alcoólico comunicou–me o seu [de Jung] veredicto de incurável, dado a Rowland H.. Durante a minha experiência religiosa tive a inspiração de uma sociedade de alcoólicos em que cada um se identificasse com o outro e lhe transmitisse a sua experiência, em uma espécie de cadeia. Se cada sofredor tinha que dar a notícia do veredicto de incurável que a ciência médica conferia ao ingresso no tratamento, deveria também lhe colocar a possibilidade de uma abertura a uma experiência de transformação espiritual. Este conceito provou ter sido a base de posteriores conquistas dos Alcoólicos Anônimos. Isto fez com que as experiências da conversão, quase tão múltiplas quanto as citadas por William James se tornassem disponíveis em larga escala.”
FREDERICO ECKSCHMIDT é psicólogo, especialista em dependência química e mestrando pela Faculdade de Medicina da USP. Possui pós-graduação em Social Health, pela Harvard University e é também é sócio-diretor do Núcleo Synthesis. Email: frederico@nucleosim.com.br