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Apresentamos a seguir a entrevista completa com os autores do lançamento Desestruturas emocionais – como se libertar da neurose. Trata-se da psicóloga Maria Diamantina Castanheira dos Santos e do teólogo e terapeuta Leonidas Silva Tonico, ou Léo, como é carinhosamente conhecido.
Fundadores da clínica de recuperação Reviva, hoje em Piedade-SP, são profissionais com mais mais de 35 de experiência no tratamento de dependências químicas, codependências afetivas, depressão, síndrome de pânico, ansiedade e outros transtornos emocionais; há mais de 35 anos vêm ajudando milhares de vidas a se recuperarem, de relacionamentos a se restabelecerem, e vêm transmitindo a mensagem.
Que mensagem é essa?
Confira agora, nesta rica e tocante entrevista, concedida na sede da clínica, num domingo de outubro de 2018, em que a sra. Diamantina e o sr. Léo recebiam pacientes para mais um grupo de pessoas buscando ajuda e tratamento.
Que abordagem vocês acham que seria a melhor, nesta matéria sobre a história de vida/personalidade de vocês?
Diamantina: Eu posso te falar a respeito dos 12 Passos (de Alcoólicos Anônimos), que salvaram a minha vida, e a do Léo, e a de tantas outras pessoas. Eu acredito muito nesses 12 Passos; acho eles incríveis e maravilhosos. Eles restauram mesmo. Infelizmente, muitas pessoas que conhecem os 12 Passos não os vivem verdadeiramente; quanto mais profundamente você os viver, é verdadeiramente um novo modo vida. [Para conhecer mais: www.aa.org.br/index.php/os-doze-passos.]
Nunca vou conseguir responder de maneira sucinta o que são os 12 Passos (você pode encontrá-los na internet), mas seria a mensagem de uma entidade superior, ou de um bem maior, ou Deus. Os 12 Passos são o exercício da bondade efetivamente, o exercício da humanidade, da caridade, do bem ao próximo; a prática desses passos, na vida, extrai o melhor de dentro de nós. Poderiam ser normas de vida, e nós teríamos um mundo muito melhor.
Poderiam falar um pouco de vocês? Do fundo de poço que viveram, e da volta por cima?
Diamantina: Eu sou psicóloga e tenho especialização em dependência química e prevenção de dependência química e outras compulsões. O Léo é terapeuta. Ele fez vários cursos, análise sistêmica, PNL [programação neurolinguística] e outros tantos, e Telma também, que faz parte de nossa equipe, tem sua formação – tanto aqui quanto nos Estados Unidos, nós três.
A gente tem visto a importância de juntar múltiplas atuações, múltiplas teorias para conseguir um resultado mais efetivo.
Com 27 anos [hoje Diamantina tem 61] eu me preparei para me suicidar, porque eu tinha falido em todos os aspectos da minha vida – eu me sentia um ser realmente inadequado. Eu não sentia gosto na vida, não sentia prazer na vida, eu me sentia completamente falida. Eu tinha realmente planejado que ia me suicidar. Mas, pelo meu próprio alcoolismo, fui beber com meus amigos e acabei esquecendo esse meu “projeto”, que era para aquele dia, para aquela noite, que eu tinha marcado já havia mais de mês. E eu bebi demais, perdi a noção de tempo, de espaço, voltei pra casa (como todo bêbado, a gente parece que fica meio teleguiado – aquelas coisas que você está habituado a fazer você continua repetindo, como se fosse um zumbi). E eu voltei pra casa e dormi (dormi não, porque bêbado não dorme, bêbado apaga), e quando acordei no dia seguinte estava arrasada, muito infeliz comigo, me sentindo a fracassada, aquela que nem suicídio ela levava a sério. Percebi minha total impotência perante tudo e perante todos. Eu não tinha a menor consciência de vida; eu não sabia quem eu era, o que eu estava fazendo aqui. E é exatamente nesse sentido que esse programa (dos 12 Passos de Alcoólicos Anônimos) me devolve a minha vida: quando pude admitir minha impotência, quando quebrei o meu orgulho, quebrei minha grandiosidade, minha pretensão de achar que eu sabia alguma coisa, aí eu me voltei para uma força maior, que eu concebo como Deus, mas que outras pessoas concebem de outras maneiras (e eu venho entendendo também isso – o importante é o conceito, e não tanto o nome); eu me voltei para uma força maior que me mostrou um caminho e uma nova maneira de viver, completamente diferente.
Léo: Nós dois somos dependentes químicos, tivemos esse problema, e fomos preparados para trabalhar com dependência química. É um modelo… quer dizer, não tem exatamente “um” modelo – é uma criação nossa, a partir do que existe. Nós não concordamos com as abordagens medicamentosas, elas estão ultrapassadas – isso que hoje em dia a indústria farmacêutica usa para tratar as desestruturas emocionais. Isso está ultrapassado, é velho. Hoje em dia a abordagem deve ser completamente outra, diferente – inclusive, se vocês considerarem a abordagem dos Alcoólicos Anônimos, ela é bem mais moderna que a dos remédios. Ela conceitua que a desestrutura emocional aparece a partir de um relacionamento ruim da pessoa com a vida.
Eu estou fazendo outro livro. Eu comecei a ver algumas possíveis abordagens, inclusive no grupo.
Hoje se publica uma Bíblia com os 12 Passos, mas de forma relativamente superficial. Estou fazendo uma abordagem bíblica do processo mesmo de desestruturação da pessoa – a partir de Adão e Eva. O início do mundo é o início das desestruturas emocionais. Um livro só com exemplos bíblicos.
Salomão, por exemplo, foi a primeira pessoa que abordou a dependência química com sabedoria.
[Voltando um pouco:] Minha experiência anterior é uma experiência administrativa, de conhecimento do mundo. Estive na marinha, por 20 anos [aos 19, Léo trouxe a mãe e os irmãos para o Rio, da Bahia, e ele era o arrimo da família]. Viagens de seis meses, pelo mundo.
Mas sobre minha vida passada: o Reviva faz isto – o Reviva divide bem a vida passada de uma nova vida. Trata-se de matar a natureza passada. Minha natureza passada foi morta há 33 anos. E a coisa funciona de tal modo que é como se eu não tivesse vida passada: minha vida começou há 33 anos. Eu desvinculo totalmente essas duas vidas.
Nessa vida passada, do dependente químico ou da pessoa desestruturada, você agride três aspectos: o aspecto social, o aspecto jurídico, e o aspecto medicinal. Com essas violências, você tem que apelar para algo que não existe na medicina, mas que é bíblico, que é matar essa natureza anterior, para então renascer: por isso eu digo que tenho 33 anos. É difícil entender isso: o conceito espiritual não é de morte do ser humano, é de morte da natureza terrena (a maledicência, a prostituição do seu corpo e dos seus valores, a própria violência, o egocentrismo exacerbado, etc.).
É um conceito bíblico, porém moderno, diante do fracasso das opções medicamentosas, da indústria farmacêutica. Vem do apóstolo Paulo. Ele matou a natureza dele. Ele deixou isso bem claro: você não é dono da vida nem da morte, mas você pode renascer matando a natureza anterior, não matando você. A vida não é sua, não lhe pertence. Mas você pode traçar uma linha divisória. Ele até mudou de nome. Era Saulo, virou Paulo. Esse é bem o enfoque do Reviva, e é bem diferente: você sai do conceito de recuperação humana para uma recuperação espiritual. A espiritualidade (as pessoas não sabem bem o que é): é uma capacidade nova da pessoa de ver, ouvir e sentir, porque a capacidade antiga não prestou.
Você usa a capacidade nova de ver, ouvir e sentir para preencher o vazio ou a falta da capacidade de antes, que está comprometida.
Veja: a Diamantina é psicóloga de formação. Eu passei pela Faculdade Ipiranga, fazendo teologia. Mas esquece isso: eu sou um cara que não adoto dogmas religiosos, mas uma abordagem espiritual.
Aí vem o milagre, o despertar descrito em Alcoólicos Anônimos. Eu não podia mais viver, mas eu não queria morrer [era década de 1980]. Eu não tinha mais condição de viver – eu queria sair daquilo. E quando eu acordei no hospital, eu estava com medo de voltar onde eu morava, e encontrei um jornal, onde estava um anúncio: “Senhor só – precisa-se para morar e trabalhar em comunidade terapêutica” [ele fala o número de cabeça]. E eu telefonei. Eu estava fugindo, não conseguira morrer; eu queria um lugar para ficar. Telefonei, e o pastor Amaro me salvou a vida: “Se você está se interessando”, ele disse, “você pega o ônibus na Benjamin Constant, salta no ponto final, tem uma farmácia chamada Cristal. Chegando à farmácia, você me telefona, e aí eu vou lhe buscar”. Tudo muito enigmático, mas era uma luz. Eu não conhecia nada de “recuperação”.
Quando eu bati lá, eu não sabia que existiam Alcóolicos Anônimos, eu não conhecia nada disso. Mas eu fui.
Quando cheguei à farmácia Cristal, aí o pastor, que depois virou nosso amigo: “Você está na farmácia Cristal? Eu vou lhe buscar”. “Não, mas… o endereço, o endereço”, eu repetia. “Mas eu vou lhe buscar!”. “Não, o endereço. Eu preciso, eu preciso!”
Ele me deu: Estrada do Barro Branco, número tal.
Eu não o esperei. Quando cheguei lá, era um portão azul, de madeira, e eu vi lá pra dentro um bocado de carro… Digo: “Que é isso?”. Eu não sabia nada de dependência química. Aí veio atender um senhor, o Valdemar. Me levou numa sala, tinha uma série de fotografias.
Chegou uma senhora: “Que tal?”. E “que tal”… (ela sempre dizia isso). E eu comecei a falar que tinha feito administração, e que isso e aquilo. Era a dona Sônia. Ela disse: “Moço, você volta – vai consertar a sua vida, e depois você retorna”.
Eu tinha esquecido: quando cheguei à minha casa, num daqueles prediozinhos antigos do centro de São Paulo, lá se assustaram ao me ver. Aí que eu dei por mim, em que lugar tinha estado todo aquele tempo – era um pardieiro. Eu subi a escada, era no primeiro andar, e não tinha porta no meu apartamento – tinham arrombado a porta pra me tirar de lá. Entrei, só tinha uma estatueta de São Francisco, um vaso marajoara, uma mala vazia, o casaco de veludo, um objeto de prata da Marinha; eu tinha uns tapetes carcomidos, e tinha escondido uns documentos ali…
Peguei um ônibus, cheguei de volta, a dona Sônia: “Seja bem-vindo”. Chamou o Maurício: “Leve o moço lá pra casa dos fundos, ele vai ficar conosco”.
Aí eu fui saber que aquilo era um centro de recuperação. E eu fiquei naquele cômodo, e fui me integrando àquele ambiente. Retomando a alimentação. E dona Sônia: “Labuta, labuta, labuta”. E foi quando eu me recuperei.
Me deram uns textos para eu traduzir. Eu fiquei três meses nisso. E labutando também, no refeitório, e ajudando pacientes. E três meses depois faltou uma pessoa para uma palestra. Eu sei que discutiram, discutiram, e aí resolveram me mandar pra palestra. Eu entendi que se eu não fosse para aquela palestra… Então eu fui (mas eu disse pra dona Sônia: “Eu vou, se a senhora for comigo”).
E na palestra alguém me perguntou algo (um paciente), não me lembro exatamente o quê, mas eu não sabia a resposta. Eu disse: “Dona Sônia, a senhora pode esclarecer?”. Ela se levantou, esclareceu e saiu, me deixando só [então o seu Léo estala os dedos]: “E foi aí que começou a minha jornada”.
Diamantina: Ela, a dona Sônia, trouxe os Neuróticos Anônimos para o Brasil.
O marido dela [norte-americano], anteriormente descobrira o AA e entrara em recuperação. Eles conseguiram fazer muitas coisas juntos. Eu acho que você deveria fazer uma entrevista com ela, se você quiser fazer uma coisa bacana. Ela é um patrimônio vivo, não é? Uma pessoa megainteressante: ela é uma lenda.
Desde quando há a Clínica Reviva? Vocês têm uma estimativa de quantos pacientes já atenderam?
Diamantina: Quando a gente começou a contar (porque teve a época que a gente não contava; começou em 1985 mas a gente não contava), deu até hoje 315 grupos. [São aproximadamente 10 a 15 pessoas por grupo.] Então, a Telma disse pra eu contar mais 20 pessoas [Diamantina mostra uma pasta com levantamento dos grupos], mas aqui tem 2.630 pessoas, do que a gente conseguiu resgatar quando se deu conta da importância de documentar isso. Antes a gente não documentava, era tudo muito empírico. E aí a gente foi se dando conta de que era bom normatizar, ter tudo registrado, para ter uma ordem. Mas isso foi sendo acrescentado, isso não existia antes, isso foi acontecendo – tudo “foi acontecendo”. Como Deus gosta, né? Essa é uma característica d’Ele – vai acontecendo…
Qual o momento de maior crise? (Já houve “beira de rompimento”, do casal e do projeto de clínica?)
Diamantina: O projeto da clínica nunca esteve à beira de um rompimento, nunca. Mesmo quando a gente ia romper enquanto casal, porque a obra ia ficar comigo. Já estava decidido que eu não iria abrir mão, nem que eu tivesse de montar outra equipe, nem que tivesse de reajustar as estruturas, a obra nunca esteve em perigo.
A gente sabia que haveria um período de adaptação, mas eu não arredava o pé, entende? Pelo menos enquanto não estivesse uma equipe trabalhando. Eu até poderia sair no futuro, mas deixaria isso aqui funcionando. Isso sempre esteve muito claro em minha cabeça. São as decisões que a gente toma na vida e das quais só abre mão salvo questão maior. Você tem que tomar uma postura, tomar uma decisão, e ser coerente com ela. Coerência é fundamental.
Você quer ver quando a gente gosta de um filme? Quando os personagens são coerentes. Agora, você tem um personagem, que é o vilão da história, e lá pelo meio ele começa a se tornar bonzinho… Você se desinteressa pelo filme. Porque não tem coerência, não faz sentido.
Ele vai ficando bonzinho, bonzinho, as atitudes dele não combinam com o que ele estava fazendo no começo do filme… Você para de ver o filme. Você fala: “Não é sério”.
E se isso vale para um filme, imagina na vida?
Você está comprando um carro com um vendedor, e ele vem vindo numa linha de “Ah, que bom que você vai trocar de carro. Eu tenho o que você precisa”. De repente ele começa a falar no celular com a esposa, dali a pouco começa a falar com o dono, dali a pouco entrega um panfleto para você e vai conversar com outro vendedor, e tomar café… E você vê esse descaso, e o que você faz? Você levanta da loja e vai embora. Você não faz negócio com uma pessoa assim.
Se você não faz isso comprando um carro, como é que você vai fazer isso na sua vida, com você?
Então coerência é fundamental. Essa coisa integral – ser íntegro. Que o sim seja sim, e que o não seja não.
Mais que isso é devaneio, delírio. É inconsistente. Essa palavra é muito importante: consistência.
Teriam conseguido sozinhos?
Diamantina: Sem a ajuda de um poder superior, nunca. Na verdade, quem coordena isso aqui [o Reviva] é um poder superior. E a gente vai sempre pedindo iluminação, orientação. Tanto que eu considero o Reviva solo sagrado. Acho que tem muitos solos sagrados no mundo, e esse aqui é um deles. E eu creio nisso. Creio que um poder superior sabe que pessoas estão atormentadas e que precisam de luz, precisam de cura, de libertação.
As pessoas que mais se beneficiam no Reviva são as pessoas que restauram seu vínculo com o Bem, são as que sentem que fazem parte do Bem e que são abençoadas. São essas as que mais se restauram.
As que vêm num processo intelectual ficam bambeando por um tempo até decidir de que lado vão descer do muro. As que são convencidas intelectualmente (porque o programa tem um conteúdo que é bacana; tem argumentação, não é vazio), então algumas pessoas se convencem intelectualmente e até ficam um ano, dois, quatro, cinco anos em recuperação, nove anos em recuperação – pelo intelecto. Mas se você não faz essa conversão espiritual, você não consegue permanecer em recuperação. Nove anos depois o indivíduo recai; doze anos depois o indivíduo recai, treze anos…
Porque para cada argumento intelectual sempre haverá um contra-argumento – é a famosa tese, antítese e síntese. Isso sempre existiu.
Qual a porcentagem de recuperandos?
Diamantina: A gente tem uma noção de que seja em torno de 60%. O problema é que tem algumas pessoas que ficam em recuperação, mas que a gente perde o contato. Então nós não temos bem certeza. Não tem um questionário que eu faça, mensalmente ou anualmente, ou que eu possa conferir.
Eu sei que, por exemplo, três meses atrás uma pessoa me achou no Facebook e recontou a história dele, que esteve aqui 13 anos atrás. Eu não lembrava mais da situação, mas depois eu lembrei, e estamos mantendo contato.
Dois meses depois ele me encaminhou uma pessoa. Então têm coisas assim: às vezes a gente se perde, dali a pouco a gente se encontra novamente.
Tem um paciente de Minas Gerais que mudou para João Pessoa. Em João Pessoa, num dado momento, teve dificuldade com uma pessoa, e encaminhou pra gente – e isso já fazia 10 anos que ele estava em recuperação. E hoje tem o ambulatório em João Pessoa por causa dele, que foi de Minas para João Pessoa.
Então têm essas coisas que não tem como ter domínio no trabalho que a gente faz, que é muito personalizado – nós decidimos que íamos manter pequeno, individual, em grupo. Decidimos preservar o Reviva assim: casa, família, que é pra outro tipo de público, não é pra todo mundo. A gente sabe disso.
Muitos anos atrás, e outras diversas vezes, nós recebemos várias propostas de institucionalizar o Reviva. Para o Reviva virar uma instituição e cuidar de 100 pessoas – montar uma equipe e tudo o mais. Já me propuseram fazer franquia, já me propuseram outras opções, mas nós não queremos perder a qualidade. São decisões que você vai tomando ao longo do tempo.
Por que se consegue recuperar um paciente? E por que não se consegue? Um vínculo com o livro seria a personalidade (do doente) acima dos princípios da recuperação…
Diamantina: Então… Para uma pessoa leiga, isso não faz muito sentido [“princípios acima de personalidades”], já que todos temos uma personalidade. O que acontece é que enquanto o doente não entender a sua doença, ele não vai lutar contra ela, porque acha que tem o controle [por exemplo, sobre a dependência do álcool, ou sobre o temperamento explosivo, etc.]. Por isso é a doença do autoengano, é a doença da falta de percepção, é a doença da negação. Quando a pessoa percebe que está ruim (e o que ela percebe é 30% da realidade), é muito pouco perto do que ela precisa perceber. E o trabalho do Reviva, e o que o livro se propõe, é mostrar para a pessoa que o que ela está percebendo (e que já acha que está muito ruim) é 30% só. Na verdade está muito pior do que ela pensa, e mesmo assim ela já acha que está muito sério – mas é muito pior. É como se ela estivesse com tuberculose, mas tomando remédio para gripe. Não vai conseguir nunca, porque ela tem que ser muito mais séria do que está sendo; tem que se dedicar muito mais do que está se dedicando.
Uma das características da doença, na negação, é separar os problemas de um lado, e a vida da pessoa de outro. Ela sempre minimiza.
Outra questão dentro da doença é que a pessoa, como não tolera dor (porque está toda machucada, já que a doença machuca muito), ela pega só por partes – pega um problema de cada vez, mas se ela puder juntar todos os problemas de uma vez ela vai entender qual é o mínimo divisor comum disso tudo, e aí vai ter o entendimento de que a vida dela toda está despedaçada. Que não é só o que ela está enxergando, não é só aquele trechinho, só o que a doença está permitindo que ela veja pra poder sentir que ainda tem controle. A ilusão de controle é uma questão muito importante nessa doença, porque a pessoa acha que o tem. Então, quando ela reconhece um ou outro defeito, ela fica com a falsa sensação de que está tendo consciência da vida dela, mas não está. Ela está completamente inconsciente. É a famosa frase, que a gente usa muito aqui: “Sinceramente enganado”.
[Serviu muito pra mim isso aqui, viu. “Só enxerga 30%”.] Só enxerga 30% e acha que está vendo tudo – se acha acima da média.
A que vocês atribuem o sucesso de vocês, na clínica e nas recuperações alcançadas?
Diamantina: Em primeiro lugar, a um poder superior. Em segundo lugar, à nossa sobriedade. Se nós tivéssemos perdido a sobriedade, nós teríamos posto a perder tudo isso – esse trabalho lindo e maravilhoso a gente teria jogado fora.
Em terceiro lugar, os próprios pacientes, as próprias pessoas que se tornaram nossos amigos, parceiros, que ficam em oração, que permanecem vinculados de um modo ou de outro – cada um dentro das suas possibilidades. Crendo, e mandando boas energias para cá, e mandando coisas positivas para cá. Sem isso a gente também não daria continuidade. Esses parceiros lindos. Verdadeiros anjos.
Como já há literaturas dos grupos anônimos, que estudam a doença/recuperação, o que motivou a escrita e publicação de outro livro sobre o tema? Por que do livro?
Diamantina: Não é o que não está na literatura de 12 Passos – não vemos como uma deficiência, mas vemos que algumas pessoas não terão acesso a esse programa, como aconteceu na nossa própria história. Porque essas pessoas vivem outro universo, e a gente quer possibilitar que essas pessoas tenham acesso a esse tipo de literatura e possam encontrar uma libertação numa linguagem um pouco diferente, para ampliar, amplificar o que já existe – para poder atingir mais pessoas. É o desejo de levar isso mais longe. É um bracinho que alcance mais adiante algumas pessoas.
Léo: O livro é outra alternativa, para fugir das alternativas comuns.
É uma abordagem diferente. Não é nova, mas é uma abordagem diferente. Uma abordagem que permite ao próprio desestruturado, pelo conhecimento, entender o que se passa com ele.
Porque a pessoa que toma remédio, ela não sabe o que tem. O indivíduo que tem depressão, ele não sabe o que tem – ele não sabe nem o que é depressão.
Diamantina: Você diria que o livro é mais um instrumento, mais uma ferramenta de que a pessoa possa se utilizar para ficar bem?
Léo: Sim. É isso.
A ideia do livro é essa, não é lutar contra indústrias ou criar controvérsias. É juntar as pessoas. A ideia do livro é exatamente dar uma alternativa para a pessoa entender.
Aqui você vê pessoas que vencem a desestrutura após ter essa compreensão. E vê o tamanho da desestrutura: são pessoas com muita oportunidade, mas absolutamente desestruturadas.
Diamantina: Uma coisa de que a gente tomou consciência é que a maior parte dos nossos pacientes são pessoas formadoras de opinião. Você é formador de opinião, ela é formadora de opinião. A gente trabalha num efeito dominó. Porque se o indivíduo que é formador de opinião está completamente desajustado, quantas pessoas ele vai impactar?
[Vai se transmitindo a desestrutura, a desconexão, o viver desconectado.]
Sim, exato. E cada vez mais o Reviva está se aperfeiçoando nessa abordagem, nesse tratamento.
E tem interesses, interesses maiores que gostam dessa desconexão. Porque desconectado você faz um monte de bobagem e depois você se sente mal, mas você não tem poder, você não tem força para sair disso sozinho.
Léo: A desestrutura toma todos os aspectos da vida da pessoa. É como se fosse um vício que toma tudo. Não se entende que as pessoas, hoje (como os computadores), é como se fossem programadas – se não substituir a programação, se não reprogramar, não melhoram.
Que público vocês imaginam que o livro vai atingir? Como?
Diamantina: A gente quer atingir um público que seja mais intelectualizado, ou que tenha outra condição [cultural ou economicamente, por exemplo], e que ache que as irmandades de anônimos são muito simples para ele, ou muito distantes, por ignorar mesmo, por desconhecer a maravilha que é isso.
São pessoas que a priori não teriam acesso ao programa dos 12 Passos, mas que, num segundo momento, se tivessem acesso, iriam rejeitar por achar que não é algo científico, algo passível de ser estudado – por sentir que algo que não tenha credibilidade lá.
O livro aponta a espiritualidade como vértice tanto do adoecimento quanto da recuperação. Como isso se dá? O que é exatamente essa espiritualidade?
Diamantina: Esse entendimento de que nós somos seres de luz, esse entendimento de que somos seres que temos de fazer uma opção entre o bem e o mal, de que existe algo além de nós, que é muito mais forte e que vai além do natural, que é o sobrenatural.
É acessar outro plano, outra essência, outra energia, que para nós é inegável.
Não com fanatismo, porque isso também é um risco. Para mim, fanatismo é uma compulsão – é mais uma das compulsões. Só que o objeto dessa compulsão é a religião. É preciso cuidado para não cair em outra compulsão. E existe a compulsão da anorexia – que é a daquela pessoa que combate a religião loucamente, por ver pessoas que são fanáticas. São vertentes do ser humano, porque tudo nós podemos polarizar, e quando polarizamos nós começamos a ficar perto das aberrações. Aberração é apelar para uma das polaridades.
Então aquele cara que combate a religião, que quer que matem as pessoas que têm religião, é tão doente quanto aquele que acha que quem não tem religião tem que ser morto. É o mesmo princípio – são os polos do ser humano. E a gente pode polarizar tudo – sono, comida, sexo, trabalho, dinheiro, poder, pensar. Tem pessoas que são pensadoras crônicas – ela pensa, pensa, pensa, e não consegue sair daquilo.
A espiritualidade condiz exatamente com essa nossa essência, com essa nossa centelha divina. Nós temos que saber a quem nós vamos estar servindo – você tem que tomar uma decisão. Porque você vai servir a alguém, não tem jeito: ou você vai servir ao bem, ou você vai servir ao mal. E diz que nessa história não tem neutro, né? – porque o neutro já tomou uma posição. Quando você é neutro, você já é um inocente útil. Você vai ser utilizado pelo de menor caráter, pelo de menor valor, porque ele vai utilizar você “de boa”.
Já o Bem tem princípios, tem regras. Não aceita qualquer um – tem que ser consciente, tem que ser livre, tem que ser opcional, tem que ser escolha. E talvez aí esteja a dificuldade para o ser humano, porque ele tem que se comprometer. E o neurótico, ou a pessoa emocionalmente desestruturada, não gosta de compromisso nem de responsabilidade, porque ele tem medo de errar, de falhar. Tem medo de que, se assumir esse compromisso, ele vai ficar comprometido, e aí não vai poder abraçar outra coisa.
Como é sua relação diária, cotidiana, com seu poder superior?
Diamantina: É mesmo uma relação diária, cotidiana, momentânea – a todo instante.
Em alguns momentos eu me concentro no que estou fazendo e eu perco essa consciência da conexão, mas eu continuo conectada. Eu não perco a conexão. Eu às vezes perco a consciência da conexão, em alguns momentos quando estou muito focada no que eu estou fazendo, mas a conexão é o tempo todo. Eu definitivamente tenho essa opção de vida, de estar unida a essa força maior, a um ser maior; e eu espero estar todo o tempo disponível, para fazer o bem, a serviço do bem. Já que eu ia me matar, nada melhor do que entregar minha vida para esse ser maior – esse é o meu entendimento de “morrer em vida”; então, de algum modo eu “morri”, e nasci para essa nova vida.
Claro que tudo isso é subjetivo, é difícil pôr em palavras.
[É aquilo que a senhora já nos falou um dia: que esta vida nova que temos é um presente.] É um maravilhoso presente.
O que você concebe por Deus?
Diamantina: Uma força maior, a essência pura do amor, onde eu pretendo aprender; sabedoria, unidade, universo.
[Voltando àquilo da conexão, quando você está tratando um paciente, há momentos de confronto em que você perde o contato?] Se você entrou confiando, você não perde. Você faz o embate, você faz o que tem de ser feito. Isso é presente, isso é minha vida – é a história da minha vida.
Não importa onde eu esteja: eu posso estar numa sala de terapia, num supermercado pagando minha conta no caixa. Ontem, por exemplo: ontem eu estava esperando no cinema para entrar, a Telma estava sentada no sofá, eu estava jogando sudoku, e no meu canto de olho apareceu um garotinho, a cinco metros de mim, de um ano e meio, dois anos de idade, que estava indo pôr a mão no abajur, na lâmpada. Era uma mesa baixa, com abajur, e eu não sei como que eu levantei e fui tão rápido lá. Eu não assustei ele, e falei pra ele, “não pode, faz dodói no neném”. Ele ficou me olhando, e a mãe chegou (a mãe não viu, porque estava conversando). Então essa conexão é a qualquer hora, em qualquer lugar, a qualquer momento ou em qualquer instante.
E aí a mãe tirou ele abruptamente, e óbvio que uma criança de um ano e meio, dois, que ia fazer uma coisa megadivertida, que era mexer na lâmpada do abajur, e a mãe tira, ele ia abrir um berreiro. E eu estava com um cardápio, que estava embaixo do sudoku, no meu colo (e aí você vê que faz coisas que nem sabe que está fazendo, quando você está ungido, quando está inspirado, iluminado), e eu mostrei o cardápio, e ele achou megainteressante, e foi feliz da vida embora, entendeu? São coisas de segundos, e isso acontece o tempo todo na minha história – o tempo todo.
Então é essa a conexão…
[Tem a ver com uma atenção especial?] Você se dispõe e o universo amplia a sua consciência, e você vai vendo coisas que não vê quando está voltado para o ego, direcionado pelo ego. Porque o ego é um querer sem fim. Ele é muito autocentrado.
E é disso que se trata o livro: de mostrar que se você fica autocentrado, se você é autodirigido (ou voltado somente para si mesmo), você não consegue sentir, enquanto essa força maior infalível, é eterna.
Nós estamos tentando discutir momento, e o eterno não tem momento, não tem como você delimitar quando você está conectado. É eterno.
Existe algo além dessa realidade palpável, tátil, audível, cujo limite é a morte física? O que seria?
Diamantina: Para nós aqui do Reviva, com certeza, sim. É essa força do Bem que a gente acredita que existe para todas as pessoas, e que algumas pessoas, quando adoecem, é porque perderam essa conexão, perderam essa capacidade de tocar esse Bem e de se sentir tocadas por esse Bem, de ter essa troca. E o que o Reviva faz é exatamente isso: redirecionar a pessoa para sua própria essência, para o seu todo, para o seu bem-querer.
Elas acreditam que o Bem machucou elas. O Bem nunca machuca. O que machuca é a ausência do Bem, assim como não existe escuro, existe ausência de luz; como não existe frio, existe ausência de calor; e a ausência de calor a gente sente como frio, e passa a acreditar que existe o frio, quando o que existe é a ausência de calor. Assim que o calor chega, o frio não existe. Assim com a luz e a escuridão. Essas não são palavras minhas, mas acho que representam bem o conceito que eu tenho desse Bem, desse Poder Maior. Existe exatamente isso.
E aí nós somos também templos – todos nós somos.
Por que a ciência (a medicina) não dá o valor devido a essa dimensão, a espiritualidade, no tratamento das doenças mentais e emocionais?
Diamantina: Porque não consegue explicar, e tudo que não é explicável parece que não é um objeto de estudo da ciência, a não ser teologia e ciências que se dedicam ao estudo do que não se explica. O restante da ciência se apartou, com a ideia de que se não é explicável não é coerente. Mas há uma consistência, há uma reprodução – é possível de reprodução, tudo que está nessa esfera do sobrenatural. Embora a gente tenha no Reviva uma postura não-religiosa, já que existem muitas religiões e muitas crenças diferentes, então a gente fica no que é comum a todos.
[O que a sra. diz que é possível reproduzir?] A sensação, o comportamento, as atitudes, e portanto o resultado. O resultado, nesses 30 e tantos anos, tem sido sempre o mesmo: pessoas que se permitem acreditar sem ver, veem, posteriormente. Acontece, sempre, sempre. E pessoas que sempre não se permitem e não creem, com elas não acontece – a vida não melhora, elas não se tornam funcionais, não flui. Então isso se reproduz sempre.
E não importa a nacionalidade, não importa a crença religiosa, não importa a beleza física, o nível intelectual, o nível profissional, a condição sócio-econômica, a origem da pessoa e o que ela viveu na história dela – a reconexão com sua espiritualidade se repete independente da história da vida da pessoa, do núcleo dela. Isso se repete sempre, por isso é universal, dentro do nosso contexto, com as pessoas com quem a gente tem convivido. As pessoas que se permitem, sentem.
Léo: O conhecimento das desestruturas emocionais surgiu, no meu entender, só a partir do Pinel [Philippe Pinel, médico psiquiatra francês, 1745-1826]. E só pra você ter uma ideia: o sujeito que inventou uma metodologia para supostamente superar a desestrutura, que foi a lobotomia, esse sujeito foi agraciado com o Prêmio Nobel [Egas Moniz, médico português, em 1933]. Só pra você ter uma ideia!
Quando você entende isso, aí você vê como as coisas andam, em termos de abordagem da desestrutura emocional.
O mundo de hoje vem num conceito de drogas (também chamadas de “remédios”) – você tem diversas abordagens, mas a abordagem da psiquiatria é a medicamentosa. Ela empacou até hoje em seu conceito de desestrutura emocional como a causa. Mas a desestrutura, num conceito mais moderno, não é vista como a causa – e ela não é a causa, ela é o segundo elo da corrente.
O primeiro elo são os pensamentos; o segundo, as emoções; e o terceiro, o comportamento. Esse é um conceito moderno, uma via moderna de tratamento para as desestruturas.
O Código Internacional das Doenças (CID) é todo em cima das desestruturas emocionais, e já está ultrapassado. Você dizer é terrível, porém pode ser provado: temos uma indústria farmacêutica que é quem manda na medicina. Sem dúvida, sem dúvida!
Então é duro você dizer isso, e também não vou me rebelar contra o mundo. Mas aqui a gente faz isto: busca trabalhar o primeiro elo da corrente (os pensamentos).
Aí a gente volta: Adão não nasceu. Ele foi criado, foi “feito”. E ele desobedeceu, e a primeira desestrutura que ele teve foi o medo, porque ele se escondeu de Deus, cismando que estava nu. E depois teve a raiva: “Eu não Lhe pedi mulher nenhuma. Foi a mulher que o Senhor me deu”. Então você vê que já aparece a desestrutura “no início do mundo”, mas o início da abordagem só se dá praticamente em 1820, ou seja, a abordagem da desestrutura emocional como uma doença que se cura com medicação.
Aí tem uma coisa obscura, e quando você estuda isso você vai ver o que está por trás: a medicina não sabia fabricar remédio, não tinha tecnologia. Psicotrópicos, um tipo específico – estamos falando de desestruturas. E sabe o que aconteceu? A medicina foi buscar no tráfico. Sim. Eu tenho até aí, propagandas de cocaína para criança. Maconha… Que eram vendidas nas drogarias.
Então você percebe: droga/drogaria. Você tem essa apostila? [Não.] Eu tenho ali – as propagandas da época. Algumas. Cocaína pra criança! A cocaína como remédio do papa… Coisa do papa da época…
A partir de algum momento, veja a ironia, a medicina começou a fabricar. Ela desenvolveu uma tecnologia para fabricar medicamentos que não são naturais. Sim, essa é a grande verdade. E aí o que foi que houve? A medicina deixou os remédios naturais (a cocaína, e outros, maconha, e tal) e começou a fabricar, e a ironia é que hoje é o tráfico que usa esses remédios [para potencializar o efeito e aumentar o volume de suas drogas].
Agora você vê pessoas morrendo de overdose, inclusive de remédios. Você vê os casos, como o do Michael Jackson, e outros. Hoje em dia, você pode ter certeza: se você vai lá [comprar droga], você na verdade vai comprar remédio. Ironicamente.
O primeiro ser humano que nasceu, ou que nasceu com cordão umbilical, nasceu com instintos de sobrevivência (a fome, a sede, o sono, o sexo). Mas esses instintos foram manuseados de forma que, hoje, propiciassem não a sobrevivência, mas o prazer. Então é uma história marota, rapaz. Isso tudo já está escrito. É só você pesquisar.
E é uma ironia muito grande, o tráfico usando o remédio. É como uma vingança. Antigamente a medicina usou o tráfico, e hoje o tráfico está se vingando.
Mas eu acredito que, ironicamente também, a pessoa que usa droga não sabe… O que estamos falando é de prazer. Se você for à base da compulsão, ninguém é dependente químico. A pessoa é dependente do prazer que a droga traz. É dependente do prazer.
Tanto que quando eu uso uma droga que me dá prazer, quando eu passo a usar, depois de um tempo esse prazer diminui, e eu procuro outra droga. Porque eu não sou mais dependente desse psicotrópico, eu sou dependente do prazer. Então, por que a pessoa tem uma overdose? É a busca desse prazer, e quando o organismo não aguenta, o cérebro promove tempestades viscerais, que é a bendita overdose, o coma alcoólico.
Você vê que tem um lado bem simples, que ninguém aborda. Praticamente ninguém.
“Depois de Adão”, o ser humano passou a crescer, para que tivesse uma infância, uma adolescência e uma idade adulta, e para que esses instintos se transformassem em necessidades de sobrevivência.
Quando você vem acompanhando a exploração dos instintos pela indústria e pelo comércio, vê que existe um manuseio dos instintos em formas de prazer. Até a comida. Você vê que não tem nada no comércio e na propaganda que seja “para sobrevivência” – é o prazer que eles focam!
A indústria mais inocente é a do sono… E tem a indústria do sexo! Está dando pra você pegar isso? É uma coisa meio marota, viu. Como é que você vai brigar contra um status quo? Se até o cidadão que fez a lobotomia foi agraciado com o Prêmio Nobel! Isso é um crime, é um crime.
O choque elétrico tornou-se hoje em “convulsoterapia”… E não é só o choque elétrico. Antes de dar o choque elétrico, dá-se um choque medicamentoso no indivíduo. É aquela coisa: “Esse cara não presta pra nada mesmo, né?”.
Quando você se aprofunda nessas coisas, você vê que é tudo tão incipiente, tudo tão contraverso.
[Assim como nós, indivíduos, temos sintomas que não são a doença, a indústria farmacêutica parece um sintoma do adoecimento da sociedade.]
A indústria farmacêutica aborda as emoções. Se você tem incapacidade de superar um problema, por exemplo, se você fica triste, dependendo do tamanho da sua tristeza (que é a depressão), você entra na incapacidade de resolver, e aí você sente dor, que é natural. A indústria aborda somente essa dor.
Uma pessoa, por uma incapacidade qualquer, manifesta uma emoção – seja de ansiedade, seja de medo –, aí se trabalha em cima só da ansiedade. Para quê? Não é a solução, porque quando você trabalha em cima das emoções (é isso que a ciência atual faz), tentando consertar o que uma pessoa sente, você está encobrindo uma série de fatores – primeiro, a inteligência do ser humano, inteligência que é, basicamente, manifestada pela capacidade de pensar, de criar. Mas a doença tira isso, os remédios tiram isso. O remédio trabalha em cima da capacidade do ser humano de sentir.
Conclusão: qual o problema da desestrutura emocional? O problema principal não é a desestrutura emocional – é a inteligência, a memória, a resposta sensitiva, as dimensões da consciência, a profundidade. E você pega as pessoas com desestrutura – até médicos, padres, etc.; invariavelmente você tem gente com essa formação –, e são pessoas que não pensam mais. Ele ou ela ainda consegue trabalhar porque, na doença emocional, na progressão destrutiva de hábitos, a capacidade de trabalhar é a última que você perde.
Já tivemos profissionais de outras áreas médicas com sete, oito internações. Quando você tem uma pessoa com esse número de internações, ela já é um profissional de internações. Tem chances muito reduzidas de se recuperar. Aqui buscamos tirá-la desse contexto todo de dependência em que ela se enfiou, mostramos formas de agir diferente, de fazer, e graças a Deus muitas vão se virando, vão reaprendendo…
A doença emocional é burrice – eu gosto de chamar assim. É burrice! A pessoa acaba tendo um déficit de QI (quociente de inteligência). Por exemplo: já recebemos profissionais da área de segurança pública, pessoas que entraram em paranoia. Foram formadas para defender a lei, e usavam cocaína. Pense que quando usam cocaína, que é uma droga proibida, estão com o sentido de alerta ligado, e pensando só nisso – mania de perseguição. São encadeamentos tão lógicos, que, você entendendo isso, você começa a se recuperar.
[Diamantina traz a apostila sobre remédios, que tem propagandas antigas do que hoje são drogas ilícitas, como cocaína e maconha. O senhor Léo prossegue:]
Isso já está velho. Conhece isso, né? É um refrigerante, ou: era um refrigerante à base de cocaína. Porque combatia a exaustão. E hoje eles lançaram a coca-cola com cafeína – “que vai turbinar o seu dia”. Ela é vermelha, em cima ela é marrom. E tem o red-bull…
Eles trocaram a cocaína por outra substância (já a cafeína), quatro anos antes de a cocaína ser proibida. Olhe: vendida como remédio. “Remédio Freud.” E não era proibido, não se sabia dos malefícios.
Você vê a história: foi 1820 quando o Pinel “descobriu” que “era no cérebro a doença”. E aí um indivíduo veio e tentou arrancar um pedaço do cérebro! E ganhou um prêmio de medicina… Só depois viram que era um crime.
A história prova que o uso químico dos remédios é equivocado, atacando sintomas e não causas. Eu dizia que as drogarias nasceram das drogas, aí você pode perceber o seguinte – que daqui uns dias não vai haver mais drogarias, vai ter “farmácias”.
Então, quando você pega esse monte de fatos, quando você começa a estudar – é tacanha a situação da nossa ciência.
E não adianta a gente se revoltar. A gente tem que re-determinar os nossos conceitos.
Como o mundo de hoje influencia no adoecimento e na ausência de espiritualidade?
Diamantina: Totalmente. Porque está sendo muito alimentado o individualismo, o excesso de liberdade, que já não é liberdade (liberdade não tem excesso, né? Acabei de falar uma “besteira”… Você vê que a gente vai indo, vai indo, e acaba sendo contaminado por essas falas). Não tem como ter “liberdade em excesso” – liberdade é liberdade. Ela é por excelência, ela é a excelência.
A não-liberdade é que é excessiva, que acaba invadindo.
Essa coisa de achar que se eu possuir mais coisas é que eu vou ser feliz; que se eu possuir mais status é que eu vou ser feliz (às vezes não precisa ser coisas materiais, não precisa ser posses, ou bens, embora hoje em dia esteja se pregando que você só vai ser feliz se tiver posses, só vai ser feliz se tiver o carrão, uma megacasa, uma casa de praia…).
A sua felicidade, ou “a” felicidade está muito condicionada, e aí a pessoa fica infeliz porque, se ela não tem aquilo, ela não pode ser feliz. Ela não tem um corpo magro – então ela não pode ser feliz (claro que eu acredito num corpo magro por saúde, não por estética. Mas tem uma tirania da beleza, em que o resto vira resto – tem uma régua, um critério de beleza, e o resto é literalmente resto).
E muitas pessoas acreditam que só se for bonita é que ela vai poder ser feliz. Tem no YouTube uma mensagem de uma moça, “A Mulher Mais Feia do Mundo”, que é motivacional.
É incrível! Ela quebra tudo quanto é tabu; ela falou que sabe que é feia, e que o desejo dela era ser motivacional, e muitas pessoas falaram pra ela que não dava porque ela era feia. E hoje ela é uma palestrante motivacional em cima da “feiura” dela, e funciona muitíssimo bem, e ela diz que já escreveu um livro (que era outro sonho dela), e que agora só falta casar – que é o próximo sonho, e que ela vai conseguir.
Onde está a regra no Universo de que feio não casa? Quem falou isso? De onde veio isso?
É uma coisa que não é dita, mas veladamente, secretamente, todo mundo concebe isso. Por quê? Porque é colocado que a bonitona, que a belezura, é mais feliz no casamento – o que é mentira. Tem muita mulher linda que é espancada pelo marido, porque casou com um narcisista maluco que a espanca; e caras que deformam o rosto da mulher bonita, “porque se você não for ser minha, você não vai ser de mais ninguém, ninguém mais vai pôr a mão”.
Coisa maluca, que tem muito a ver com isso: existe um individualismo que está sendo pregado e está destruindo você como meu irmão. Então eu não quero o seu bem – eu tenho uma competição com você. Eu tenho que provar que sou mais inteligente, que sou mais isso, ou mais aquilo. E isso me distancia de você, que é o que me deixa infeliz – o ser humano precisa do outro ser humano.
Não adianta: a gente se realiza na comunhão, a gente se realiza no estar junto independente do nível de relacionamento que você tem. Tanto que as pesquisas científicas comprovam que aqueles idosos que têm amigos vivem mais, são mais felizes e mais saudáveis.
E o ser humano, para ter amigo, precisa estar de bem consigo.
E, para estar de bem consigo, precisa do outro.
[Essa distorção da ideia de liberdade – porque hoje é liberdade de consumir…]
De possuir. Se eu tiver condições de comprar, então está tudo certo. Isso não é liberdade.
Outra coisa: as pessoas dizem que a ciência evoluiu muito – mentira. A única ciência que evoluiu é a tecnologia. É assustador até onde ela foi.
Tem coisas inimagináveis, tem coisas lindíssimas acontecendo. Você poder usar um drone pra entrar num shopping e salvar um homem de um enfarte, apenas com um leigo por perto (porque aqueles primeiros minutos são os mais importantes), e a ambulância chegar depois – é algo de arrepiar de lindo!
Mas você também tem um drone que vai mirar exatamente onde você vai lançar uma bomba.
Então, é a forma como é utilizada (de novo: pelo bem e pelo mal).
O futuro será pior? Ou haverá uma saída? Vocês têm uma esperança, e com base em quê?
Diamantina: Ah, sim, sim! Pra que tanto remédio? Então existem pessoas se insurgindo. Existe o despertar da consciência.
Porque fica tão ruim, mas tão ruim, que fica claro e evidente que está ruim, não tem como negar mais.
É a história do sapo: se você pegar um sapo e puser dentro de uma panela com água quente, ele pula, cai fora; mas se você puser o sapo na água fria, com fogo baixo, e for aumentando, aumentando, aí ele morre.
[A gente está nessa panela, esquentando aos pouquinhos. Demora para perceber, ou, quando percebe…]
Léo: “Marketing da Loucura”! Você assistiu? Ahh, não acredito… Você tem que ver. São duas horas. Não é brasileiro, é um documentário norte-americano, e está com tradução de Portugal.
Essa coisa que eu estou te dizendo, a gente vem falando há tempos – e esse filme a gente ganhou recentemente, faz três anos, mas já estamos falando isso há vinte anos. E o filme tem dados: “Doutor, na época tal o senhor assinou um documento dizendo que o remédio tal era isso e isso”. “Eu não me lembro…”
Aí você vê como a coisa é feita na indústria farmacêutica. Procure ver esse “Marketing da Loucura”. Eu não tenho capacidade nem poder [para mudar esse status, mas alguém tem isso, e joga no mundo.
Mas um dia, pode ter certeza, isso vai mudar. Tudo muda!
Eu espero que a gente não morra antes… Mas o que a gente procura fazer é sempre se atualizar, e dar poder a eles, aos pacientes.
Nós lutamos contra essa corrente que está aí. Mas, claro, há momentos em que a pessoa chega em meio a uma síndrome e tem que tomar remédio. Mas, desde que eu comecei a trabalhar com isso, a gente aprende.
Você sabe como aprendi? Médicos.
A gente tem que trabalhar com os remédios às vezes. Tem um pico de 72 horas, que você tem que cobrir, depois você tem um “pico de descida”, mais 72 horas, e aí você cobre isso convivendo com a pessoa e trazendo-a à consciência do que está acontecendo com ela. Com acompanhamento.
Há movimentos na psicologia de abordagem preventiva – tratando já na infância, antes de o indivíduo desenvolver traumas ou hábitos que o adoeçam. É possível essa abordagem? Como?
Diamantina: Isso tem sido discutido há muitos anos, não é algo novo, recente.
É o sonho de toda pessoa que quer ajudar a humanidade como um todo. É fazer uma abordagem preventiva. Como ter uma matéria na escola que ensine as crianças a lidar com as suas emoções. Ter já na escola, na estrutura escolar.
E aqui e acolá já começa a existir iniciativas nessa direção, graças a Deus. Eu vejo de uma forma maravilhosa! Também existem algumas ações de ONGs que auxiliam crianças, orientam jovens, mostram um caminho, um rumo, dão ferramentas para eles, o que também é maravilhoso – essa iniciativa é perfeita!
Algumas igrejas fazem esses trabalhos também, e é lindo. Os próprios 12 Passos – têm o AlAteen (Grupos para Familiares de Alcoólicos Anônimos – Jovens e Crianças), o Alatod (que é para os pequenininhos; em São Paulo existem reuniões para os pequenos), orientando conduta, ensinando a partilhar, ensinando a dividir seus sentimentos, ensinando que o outro não é seu opressor nem seu agressor; que, se o outro te conhecer melhor, vai ser melhor para todo mundo.
Existem alguns terapeutas e psicólogos que têm montado grupos onde essas crianças possam se expressar e ter ferramentas para saber ocupar seu espaço sem invadir o espaço do outro. Em São Paulo tem iniciativas que eu conheço em particular, algumas de um trabalho muito lindo.
Então aqui e acolá vão existindo esses espaços, iniciativas de líderes que vão encabeçando isso. Aqui e acolá vai havendo esse despertar, o despertar desse interesse.
Não só eu creio que seja extremamente válido, como eu apoio de toda maneira há muitos anos. Há muitos anos a gente vem divulgando isso.
Quando o senhor/a senhora nasceram? E como foi sua infância?
Diamantina: Eu nasci de um casal de portugueses. Tinha minha irmã. Eu nasci em 57, e a minha mãe morava na Freguesia do Ó [bairro de São Paulo]. A nossa infância era uma infância de luta. Minha mãe era analfabeta, e havia pouco tempo tinha deixado de ser empregada doméstica – passou a ser dona de casa.
Meu pai foi progredindo, ele era vendedor, então pôde garantir a subsistência de nós quatro assim.
Depois, futuramente, eles conseguiram encontrar a casa própria, na Casa Verde, vivemos lá por muitos anos, e hoje é onde fica meu consultório, no mesmo prédio.
Meu pai e minha mãe são falecidos. Meu pai morreu de alcoolismo, jovem para o padrão da família dele – ele morreu com 62 anos, numa família em que se vivia até os 90.
Então o álcool realmente o levou.
Minha mãe, uma codependente de carteirinha, com muita dificuldade. Mas, enfim, não aceitaram ajuda, não aceitaram tratamento, embora outros membros da minha família tenham aceitado ajuda, pelos 12 Passos, etc.
O Léo é de 45.
Houve um ponto de virada, em suas vidas? Como foi isso?
Diamantina: Quando eu coloquei naquelas primeiras perguntas que eu cheguei no meu limite máximo, o que nas irmandades é chamado de fundo de poço, foi o ponto de virada.
Tem um filme em que um dos personagens fala pro outro: “Você só volta quando você vai até o fim”. Lá é a conversão, a conversão se dá no fim, quando você chega no finalmente.
Na irmandade de Alcoólicos Anônimos, tem um novo lema: “Chega uma hora que chega”. É maravilhoso esse lema, porque na vida da gente tem vários momentos em que “chega uma hora que chega”.
Vocês estão com 70/60 anos, e toda semana, mais de uma vez por semana, pegam estrada para atender pacientes de outras cidades em recuperação e em início de recuperação. O que passa em sua cabeça nesses trajetos? O que ainda os move?
Diamantina: O desejo sincero de ver o outro ter uma vida com qualidade, e não sucumbir às garras da adicção. De vê-lo sair daquele inferno em que a gente esteve.
E a gente sabe que pode piorar também – nunca ninguém foi tão fundo que não dê para piorar, sabe?
Ontem eu fui assistir ao filme “Nasce uma estrela”, e eu tinha esquecido [atenção: spoiler] que o rapaz se suicida; ele é alcoólatra, ele vai para tratamento, mas não consegue (é uma reedição de um filme antigo, feito com a Barbra Streisand). Ela é uma estrela que nasce; ele está morrendo, como artista, e ela vai estourando, arrebentando. E ele que ajudou muito ela, ele que botou confiança nela.
Ela fica tentando segurá-lo, levantá-lo, mas não consegue, e o sucesso vai lá bater na porta dela, e ela vai ter que tomar decisões.
O cantor pede para ela ir com ele em uma turnê, e ela fala “não posso, eu tenho a minha”, e ele sabe que, se levá-la, ele estoura novamente. E o homem que a está empresariando diz para ele: “Não tem espaço pra você na carreira dela”.
Quando ela vai ganhar um prêmio, ele cai de bêbado no palco. Fica patético o fato de ela estar casada com ele. Ele vai internado, eles estão tentando se reerguer…
Esse filme tem muita coisa que dá pra discutir, em tratamento.
Por que estamos vivos, neste planeta?
Diamantina: Eu acho que aqui é um lugar de passagem, de aperfeiçoamento. E acho que a gente precisa aproveitar essa oportunidade, porque, para mim, muita coisa (no nível de contextualização do sentido da vida) depende disto aqui.
O Léo diria o seguinte, com a espiritualidade dele: “E eu lá sei! Estamos vivos! Pronto, é isso que importa”.
Eu acho ele tão sábio! Eu fico assim passada… Eu tenho certeza de que ele iria responder algo nesse nível, nesse porte. Aí eu fico olhando e falo: “Meu Deus, como é que eu não pensei nisso!”. [risos]
Qual a relação entre humildade e espiritualidade?
Toda.
O senhor ou a senhora acreditam ser humildes? (Pergunta marota…)
Diamantina: Eu luto por essa humildade, mas eu vejo que há muitos momentos em que eu não consigo. Gostaria de conseguir em todos, mas estou muito melhor do que eu estava.
Diria que sou 60% humilde (da minha visão pouco humilde de mim mesma [risos]).
E o Léo, por incrível que pareça, eu vejo ele 80% do tempo humilde. E ele é tão ele, e é muito interessante isso: o humilde não tem que provar mais nada. Ele é. Simplesmente é. Simples assim.
A essência da humildade é a verdadeira essência da espiritualidade – não existe um sem o outro, e não tem o outro sem o um.
[Falando para o senhor Léo: Humildade e espiritualidade, né, amor?]
Léo: A espiritualidade não é o que todo mundo pensa. A espiritualidade é uma capacidade incrível do ser humano ver, ouvir e sentir. Ou seja: é o que a doença tira.
Muito pouca gente conhece o que é espiritualidade. Inclusive a finalidade, o porquê. A espiritualidade é remédio. É cura. É o contraponto da doença.
Até a própria Bíblia explica isso. É como o conhecimento do bem e do mal.
O mal nada mais é do que uma capacidade de pensar diferente, mas é incrível como são semelhantes: o mal precisa se desenvolver; se você disser que é ruim, mas não tem obras, não milita no mal, então não é mau. Tem que ter obras, tem que uma modificação de caráter, para ser ruim.
Aí você pega o apóstolo que pretende abordar o que é a espiritualidade, e ele é simples: a espiritualidade é o bem, é a fé. A doença é o mal, é o ruim.
São dois extremos, mas quando você pega a espiritualidade, o apóstolo diz o seguinte: “Se você diz que tem espiritualidade, mas você não tem obras, então você não tem espiritualidade”. É uma passagem bíblica.
É a mesma coisa com o mal. Lembre-se de quando eu comentei sobre Adão e Eva: eles conheceram o bem e o mal. É a mesma coisa. Vamos dizer: fronteiras diferentes, mas é a mesma coisa – se você diz que é ruim, que não presta, e não tem obras, como é que vão provar que você é ruim?
“A fé sem obras é morta. Fé é a certeza de coisas que se espera, é a convicção de fatos que não se vê.”
E você vai ao apóstolo: se você diz que tem fé, mas não tem obras, então você não tem fé.
Teve alguma pergunta que não fizemos, e que vocês gostariam que a gente tivesse feito?
Léo: A única coisa que a gente pretende é adotar uma abordagem que realmente recupere. É um compromisso.
A gente olha, e vê muita gente perdida.
Você vai buscar pessoas num lugar em que elas estão há dois meses, três, sem conseguir um caminho a seguir. A não ser que exista uma incapacidade física, isso não se justifica. O que está ocorrendo nestes tempos é isso: um desalento muito grande, as pessoas desesperadas, querendo uma solução, e elas se submetem ao que está aí.
A internação é somente para tirar a pessoa do modo de vida em que ela se afundou, para tirar do quadro em que ela se encontra. Tirar um pouquinho a pessoa do hábitat dela. E em pouco tempo você consegue cortar essa modo – é possível, com uma maneira de pensar diferente. Porque o sentimento não existe sem o pensamento. E a raiz de tudo é o pensar.
É tanto que quando, nos Alcoólicos Anônimos, se diz: “Fizemos um minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos” (o Quarto Passo), eu estou sentado, fazendo o inventário – eu não vou ao meu passado; eu penso no meu passado, na minha vida. Veja o conceito: você está repensando a sua vida, está fazendo um inventário, uma retrospectiva, uma reavaliação. Você não vai lá. Você reinterpreta.
Tudo está na maneira de você interpretar. Você à distância faz um inventário, você pensa, para que você possa reinterpretar.
A gente não é bobo, a gente sabe que tem pensamentos que você não sabe deles – veja a armadilha. E tem pensamentos que você sabe que são invasivos.
Se você estiver numa igreja, e pensar numa pessoa nua, você não gostaria de pensar, e se recrimina. Então esse é um pensamento invasivo que você conhece. E o pensamento invasivo que você desconhece?
As pessoas não se recuperam porque elas não se dão tempo para reinterpretar e incorporar pensamentos novos.
Eu vim de uma cidade agora, onde temos ambulatório, e eu fiquei apavorado. Apavorado…
As pessoas estão no ambulatório [um pós-tratamento oferecido pela clínica, a continuação da terapia], mas estão doentes. Elas reconstituem tudo, toda a doença.
Pode ser que um dia a gente consiga uma maneira de introduzir (o que a gente tenta aqui) esses pensamentos novos, e que eles persistam. Se você pensar em tirar um pensamento, mas não fizer nada a respeito, você não consegue retirá-lo. O pensamento corresponde a hábitos, e para você manter um pensamento novo, você tem que ter hábitos que o reforcem.
Esse que é o conceito que os Alcoólicos Anônimos falam em seu Décimo Passo: “Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente”. Na primeira vez você não consegue, então você faz o Décimo Passo porque é para a vida toda. Trata-se de você continuar fazendo, continuar repensando.
Se você conseguir fazer isso, certeza absoluta que tem uma vida nova. Você se torna novo. Outra pessoa, no instante seguinte (à feitura diária do Décimo Passo).
Isso é o que não se faz. Ninguém reinterpreta. Por isso os Alcoólicos Anônimos, aqueles 12 Passos, são incríveis. Mas ninguém interpreta (e está tudo lá, no Décimo Passo, que pede pra você continuar a fazer o que Deus quer).
[Tem que ser uma reinterpretação militante, diária?]
Ah, diária! Sem dúvida. Não é “reinterpretei hoje, pronto, acabou”. Não: hoje de tarde você reinterpreta de novo, hoje de noite você reinterpreta de novo.
A doutora Suzana Herculano-Houzel diz que, se você quiser tirar um hábito, você tem que colocar outro no lugar. Senão você não consegue. Isso é unânime na psiquiatria e na psicologia, é consenso: você não tira um hábito sem pôr outro no lugar. O cérebro é programado, e ele é muito forte – ele repete. Você o larga, ele repete; você larga, ele repete. Por isso que a gente precisa estar consciente.
Vocês queriam deixar alguma mensagem para os leitores?
Diamantina: Da minha parte, eu queria que eles tivessem um excelente aproveitamento do livro, que esse livro fosse capaz de transformar a vida deles, como a gente pretende. Essa é a nossa pretensão: que eles possam ser tocados por essa força maior, que eles possam receber a libertação e que possam crer que existe uma vida muito melhor que a que eles têm, apesar de não terem acesso a ela ainda, neste momento. Ou seja: o que move é a fé.
E que eles tenham fé não neles (porque aqueles que estão desestruturados já faliram), mas fé na mensagem. A mensagem é boa.
Léo: A doença funciona como se fosse uma fé – mas uma fé negativa, fé na incapacidade. E aí diz o apóstolo: se você diz que tem, mas não tem obras, você não tem fé. E as obras são os hábitos. E se você quiser modificar um hábito, tem que colocar outro no lugar. Por isso: reinterprete seus pensamentos, reinterprete seus sentimentos, reinterprete o que pensa e sente – antes de agir.