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A criança pouco sabe separar o que é ela e o que é o mundo à sua volta. Difícil, para os pequenos, perceber que o que os atinge individualmente não atinge o mundo inteiro. O mundo não chora as nossas dores. Às vezes, nem as percebe.
Nós somos um, o mundo é outro. Perceber a diferença é ser jogado num mar bravio sem saber ainda nadar. Não é de uma vez só: começa quando a criança se nomeia, e em vez de dizer “Sara quer” diz “eu quero” e caminha adiante. Passa pelos 8, 9 anos, chora e sofre por coisas tão pequenas (parecem), acorda de noite com medo e não chama ninguém, porque de repente sabe de nada adiantar. E chora por isso, por essa solidão completa encontrada. Chega à adolescência, todos os seus lugares indevassáveis.
A criança precisa ser tocada e sentida. Quanto menor, mais ainda, para construir percepções sem necessidade de memória. Tocada e sentida com verdade e sem pressa. Com intenção plena. Com atenção focada, para que não lance mão, mais tarde, de paredes, muros e couraças, e se isole, sem perceber o outro, anestesiada dentro do seu eu. E precisa também saber que, mesmo importante e imensa, a sua dor não é única nem maior, e saber aprender a construir pontes, caminhos e abraços entre si e o outro.
A construção da empatia (essa ponte fraterna entre o sentir do outro e o meu) depende das ofertas que recebemos quando somos crianças: é preciso existir, sendo sentidos, percebidos, tocados, amados, carregados E é preciso o mundo existir, sendo percebido, tocado, amado, carregado. Tudo isso com verdade, sem pressa, com intenção plena e atenção focada. O exercício mais simples e complexo do amor.
Proteger a criança não é disfarçar-lhe o mundo, nem tampouco lançá-la diante de imagens e situações para as quais não tem filtros construídos. (A vida encarregar-se-á de fazer essa segunda parte, não é preciso esforço.) Mas é preciso um mundo com a feição que tem para que, enquanto cresce, aprenda que nem sempre a sua dor mais profunda é percebida, e nem sempre, sem esforço, poderá perceber a dor do outro.
Será preciso que aqueles sem casa, cama, brinquedo, comida sejam visíveis, e assim também a sua forma particular de solidão, tão encalacrada dentro do peito como qualquer outra. Será preciso dizer-lhes bom dia. Passar por eles na rua e, em vez de despercebê-los, estender-lhes a mão em cumprimento. Porque não há nada, nem ninguém, que cure essa solidão – a não ser Eu. A não ser esse Eu que aos poucos se constrói. A não ser esse Eu que se move, e vai ao encontro do olhar em vez de fechar o vidro do carro no semáforo. Porque, se não for Eu, quem será? Se não for Eu, quem abrirá?
E não se trata do que dizemos, pensamos, sentimos, queremos, ou imaginamos. É o que fazemos – é a nossa ação que se tatua como ferro quente na alma sensível da criança que desperta para o mundo. Os gestos que fazemos, e os que interrompemos; os braços que abrimos, e as mãos que fechamos; as portas que abrimos, e as que trancamos, os passos que damos, e os que tememos e abortamos: são esses os presentes de Natal visíveis e concretos diante dos olhos infantis de nossos filhos.
ANA VIEIRA PEREIRA é mestre e doutora em Literatura Comparada pela USP. Atualmente dedica-se ao ensino e à pesquisa da escrita dentro do âmbito da criação artística. Coordena o espaço Quinta Palavra, em Botucatu, e é assessora pedagógica da Escola Waldorf Rudolf Steiner, em São Paulo, e da Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp, em Botucatu. É autora de, entre outros, Do ventre ao berço: o parto em casa, Mistache Malabona e O dono do castelo.