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A polarização em torno das drogas enfraquece a voz do Brasil em negociações internacionais relacionadas ao tema, mesmo quando o país é comparado a outros da América Latina, avalia Ruth Dreifuss. Responsável por implantar política inovadora na Suíça – que incluiu salas de uso assistido de heroína -, a ex-presidente hoje é membro da Comissão Global de Política Sobre Drogas. Embora avalie a atuação do Brasil no debate como tímida, a economista não descarta avanços em direção à descriminalização das drogas. “Em certas sociedades, foram as cortes supremas que deram o primeiro passo. O STF poderia fazer o mesmo no Brasil”, diz Ruth, que chegou esteve no país cumprindo agenda relacionada ao assunto.
No Rio de Janeiro, ela concedeu uma entrevista à Dandara Tinoco, para o jornal O Globo. Confira:
A senhora desenvolveu, na Suíça, uma política de drogas considerada inovadora. Qual a importância de quebrar paradigmas nesse assunto?
Há em inglês uma expressão curiosa: a prova do pudim está no comer. Ela quer dizer, no fundo, que você pode elaborar quantas teorias quiser, mas só vai descobrir se algo funciona mesmo testando na prática. Na Suíça, vivíamos uma crise, causada pela epidemia de Aids/HIV e pelo aumento no consumo de drogas. Isso levou o setor público em nível local e nacional a desenvolver e a apoiar novos serviços de tratamento, redução de danos e prevenção. As duas ameaças, interligadas, sensibilizavam a população o suficiente para fazê-la aceitar experimentar medidas inovadoras. Confrontados com a realidade, fomos levados a mudar nossas prioridades e a implementar um novo equilíbrio entre os diferentes lados do jogo: polícia, justiça, serviço social, profissionais da saúde etc. É preciso dizer que esses novos paradigmas surgiram de um olhar realista do problema e da luta para implementar novas respostas: uma sociedade livre de drogas é uma ilusão e é responsabilidade do Estado proteger e apoiar todos, empoderar usuários de drogas, construir o tratamento baseado num contrato terapêutico, sem imposição e sem ter a abstinência como exigência; e manter uma proporcionalidade entre punições, de modo a prevenir a marginalização.
Como os suíços receberam isso?
No início, apenas aquelas pessoas que se preocupavam diretamente com a marginalização de dependentes e os riscos fatais pelos quais eles passam pediam meios para proteger suas vidas, saúde e dignidade: os dependentes em si, suas famílias, a polícia e pessoas que moram e frequentam os entornos das chamadas “cenas de uso”. Mas, conforme os problemas e a eficácia da solução dada foram aumentando, uma grande parcela da população começou a manifestar seu apoio. Essa evolução foi construída à base de muita informação, evidências científicas e argumentos sólidos, introduzidos ao debate público por políticos, cientistas, artistas e até mesmo líderes religiosos. A experimentação responsável com prescrição do uso medicinal de heroína e o monitoramento dessa empreitada e das salas de uso seguro explicam o grande apoio popular dado a essas medidas.
Além da redução de danos, a estratégia suíça inclui uma forte repressão ao crime organizado, certo?
A chamada “estratégia de quatro pilares”, a dizer: prevenção, tratamento, redução de danos e repressão; ainda destina recursos públicos em excesso ao último pilar, da repressão, por considerar o uso e a posse de drogas para uso pessoal como crime. Acontece que a repressão de ofensas pequenas é inútil e causa mais mal do que bem. Precisamos priorizar a luta contra lavagem de dinheiro e corrupção; e, para frear os grandes operadores internacionais do mercado ilegal, é central a cooperação de todos os estados impactados por essas organizações criminosas.
Quais são as consequências da atual guerra às drogas?
Os pobres e vulneráveis sofrem com as piores consequências do atual regime internacional de controle das drogas e o impacto de sua implementação nos diferentes países. Indivíduos, comunidades e regiões inteiras vivenciam a violência, a erosão da democracia, a falta de acesso à saúde, incluindo medicamentos para alívio de dor, etc. Usar drogas é correr riscos, mas o dano causado por essas políticas meramente repressivas aumentam esses riscos.
E quais são as alternativas?
Reformas implementadas em diferentes países mostram que não há uma solução única para todos os casos, que vença os danos causados pelas políticas de drogas equivocadas. É importante identificar qual a fonte do maior dano: está no encarceramento em massa de pessoas que fizeram mais mal a si do que a outros? Está nas mortíferas taxas de contaminação e overdose? Está na insegurança de comunidades inteiras, que se veem presas no meio da frente de combate? Está no trabalho forçado – uma violação de direitos humanos -, na tortura? Idealmente, os governos cuidariam de todos os problemas ao mesmo tempo. Mas, na prática, eles tem que escolher os mais drásticos. Para mim, o objetivo deve ser, no final das contas, chegar a um pacote que priorize a saúde, garanta a todos acesso a medicamentos básicos, descriminalize o consumo, renuncie ou reduza o nível da repressão a pessoas exploradas pelo crime organizado como agricultores, mulas e microtraficantes, evite a militarização da guerra às drogas e, finalmente, permita aos Estados controlarem o que hoje se encontra sob o comando de organizações criminosas. Isso implica na regulação do mercado com diferentes níveis de restrições de acordo com o risco potencial apresentado por cada substância.
Como o preconceito contra usuários afeta a sua recuperação?
A repressão e o preconceito contra usuários de drogas priva-os do acesso à serviços de saúde, à moradia e ao emprego e contribui para que percam autoestima. As consequências ainda impactam suas chances de recuperarem-se: eles realmente correm perigo de se isolar cada vez mais da sociedade e entrar em uma crescente espiral de condutas autodestrutivas.
Estados dos EUA têm avançado em direção à descriminalização da maconha. Isso tem algum impacto no resto do mundo?
O país que mais promovia as convenções internacionais e sua implementação agora fala em flexibilizar sua interpretação. Esse novo discurso visa preservar o edifício jurídico, mas, na verdade, ele deixa claro que o consenso em torno da proibição acabou. Quebrou-se o tabu sobre a necessidade de reformas profundas.
Países desenvolvidos e em desenvolvimento podem lidar com as drogas do mesmo jeito?
Esses países podem ter prioridades diferentes, mas o êxito de tratamentos, de terapias substitutivas inclusivas e de medidas de redução de danos mostra que essas medidas podem ser implementadas por toda parte. Além delas estarem alinhadas aos princípios de direitos humanos, também economizam recursos que seriam gastos para sanar outras necessidades sociais que surgiriam em sua ausência.
No Brasil, o crack hoje é visto como “inimigo número 1” da sociedade quando se trata de drogas. A senhora acredita que o país está sabendo lidar com essa droga?
Sempre foi e será infrutífero pautar-se pela demonização de uma substância, porque isso leva a ignorar os fatores sociais e individuais que geram o consumo. Geralmente, a droga vista como o “inimigo público numero um” é aquela usada pelos mais vulneráveis, as pessoas que pertencem a comunidades marginalizadas, minorias raciais, migrantes etc. Sob o álibi da luta contra essa droga, essas pessoas são ainda mais marginalizadas. Você lembra do crack nos Estados Unidos? Seu combate puniu muito mais os negros do que os brancos, que usavam “cocaína branca”.
Qual a importância de o governo brasileiro apoiar iniciativas locais relacionadas à redução de danos?
Apoio a iniciativas locais seria uma prática chave para dar início a uma política mais humana e eficiente, baseada no respeito a todos os cidadãos. Assim, também se demonstraria que o governo está ciente do alto nível de consumo de drogas no país e das falhas existentes na política de repressão.
Como avalia a posição do Brasil em negociações internacionais relacionadas às drogas?
A voz do Brasil é bastante fraca. Outros países da Europa e da América Latina são bem mais presentes e influentes. Isso se dá pelo debate interno ainda polarizado. Mas isso não impediu outros países de avançarem na arena internacional, enquanto o panorama interno ainda se encontra atravancado. Em certas sociedades, foram as cortes supremas que deram o primeiro passo. O Supremo Tribunal Federal poderia fazer o mesmo no Brasil e tirar o consumo de drogas da esfera criminal. Isso permitiria que o país tivesse numa posição mais à vontade no debate internacional.
Que avanços a Comissão Global de Política sobre Drogas conquistou desde a sua criação?
O primeiro relatório da Comissão Global de Políticas sobre Drogas desejava apenas quebrar o tabu e dar início a um debate internacional e nacional, pautado em evidências, sobre as consequências da guerra às drogas. Seis anos depois, não só temos vemos esse debate ocorrendo, mas importantes passos já foram tomados para reformar a política de drogas tanto nacional quanto regionalmente. O pacote que apresentamos no quarto relatório, agora disponível em português, não é mais considerado um sacrilégio.
A senhora foi a primeira mulher eleita presidente na Suíça. Qual o impacto de mulheres ocuparem importantes cargos nas políticas de gênero?
Mais mulheres na política são uma amostra de avanços democráticos e de que estamos, pouco a pouco, pondo fim a um desperdício de capacidades humanas e experiências. Nesse sentido, beneficia a todos. Eu e outras mulheres pioneiras, que já chegamos a essas posições de liderança, estamos mais do que dispostas a abrir ainda mais a porta para as que estão chegando agora. Agora a nova geração já tem em quem se espelhar e pode exigir soluções pragmáticas para tornar o sonho das oportunidades iguais realidade.
O que a Suíça tem a ensinar ao Brasil sobre igualdade de gênero?
A Suíça está longe de ser exemplar no quesito igualdade de gênero, basta lembrarmos que o direito feminino ao voto e ser eleita foi conquistado há apenas 45 anos. Mas aprendemos, nesse espaço de tempo, que acabar com preconceitos em nosso arcabouço jurídico não equivalia a acabar com ele no cotidiano. A luta contra a pobreza e a violência, o acesso a contraceptivos e a promoção da educação são os melhores instrumentos da luta pela igualdade de gênero.
Fonte: Dandara Tinoco, via O Globo