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Para a psicologia moderna, tratar da recuperação de um paciente, ainda mais dependente químico, seguindo os ensinamentos éticos de Jesus pode ser um problema, pois se trataria claramente de um conselho de perfeição. “Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai” (Mateus 5:48). Para a maioria das pessoas, seguir literalmente esse ensinamento causaria certa incompatibilidade com sua existência material. Por isso, a psicologia pode sugerir uma outra forma de compreender esses ensinamentos através das vivências interiores.
Compreendida dessa forma, a vida de Jesus torna-se uma espécie de manual para promover a recuperação de uma dependência química, permeado por valores éticos, disciplina, respeito à vida, criatividade para lidar com questões externas e internas, autoconhecimento e cultivo da espiritualidade.
Isso se torna necessário porque, além de ser uma doença física, a dependência química também deforma o caráter da pessoa, tornando-a dependente da ira, da violência, da arrogância, da mentira e do auto-engano.
Mas, como disse Jesus: “bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mateus 5:3). Em termos psicológicos, este ensinamento relaciona-se com a aceitação da doença por parte do dependente, pois só quando ele tem consciência de seu próprio vazio espiritual (sentido da vida), que ele adquire as condições de entrar num programa que o ajude a se recuperar.
Aceitando a perda de controle de sua vida pela compulsão de usar álcool ou drogas, o dependente deve pedir ajuda. Mas muitas vezes ele não aceita essa ajuda, por causa da própria doença. Neste ponto ele deve se lembrar das palavras de Jesus que ensinava: “o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza. (…) Porque quando estou fraco então sou forte.” (2 Coríntios 12:9 e 10).
Isso significa que, talvez, não possamos alcançar sozinhos o objetivo do crescimento espiritual. Precisaremos, então, pedir a ajuda de outras pessoas e de um Poder Superior que nos guie nesta jornada.
Em seguida, Jesus nos convida: “não resistais ao mal” e “amai a vossos inimigos” (Mateus 5:39 e 44). Essas frases analisadas, no sentido simbólico, nos ensinam a amar e nos reconciliar com os elementos de nossa personalidade que consideramos inaceitáveis e que relegamos ao inconsciente. Esse é o nosso inimigo interno que se alimenta de culpa, raiva remorsos e sentimentos não aceitos pela consciência. E oferecer resistência a eles causa uma divisão na personalidade do indivíduo, gerando uma grave neurose. Essa mesma advertência aparece em seus ensinamentos quando ele adverte: “entra em acordo sem demora com o teu adversário” (Mateus 5:25). No fundo é sempre um fator egoísta presente em nós mesmos que é projetado no outro e nos impede de chegarmos à totalidade de nossa personalidade. Esse núcleo egoísta é na verdade nosso maior adversário, porque ele baseia sua existência na ilusão e no engano de um “eu” separado do todo.
Esse é um passo decisivo, pois exige que o dependente comece um processo de autoconhecimento profundo. Nesse ponto é sempre recomendada a ajuda de um psicoterapeuta especializado, além da ajuda de um grupo como o A.A. (Alcoólicos Anônimos) ou o N.A. (Narcóticos Anônimos).
Outro ensinamento que guiará o indivíduo nesta jornada interior é a parábola do homem prudente que edificou sua casa e cavou bem fundo para pôr seus alicerces sobre a rocha (Lucas 6:48). Isso é necessário porque quando vem a enchente, ou seja, as intensas cargas emocionais que rebaixam nossa consciência, a casa, que representa nossa psique, não será abalada.
Esse processo de transformação interior é demorado e não deve ser conduzido com ansiedade. Cada dia deve ser visto como uma oportunidade dessa reconstrução da personalidade. Como foi ensinado: “não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã terá suas preocupações!” (Mateus 6:34).
E saber viver o presente é conseguir colocar em prática a espiritualidade. O agora não pertence ao tempo e, sim, à eternidade. Estar centrado em si mesmo, sem trazer mágoas e lembranças do passado ou com a ansiedade pelo que acontecerá no futuro é um treino muito poderoso que ajuda a pessoa a alcançar qualquer objetivo.
Este ensinamento retira qualquer preocupação ou culpa desnecessária que atrapalha nossa realização e conduz o indivíduo a uma nova perspectiva em sua vida. Só assim ele entenderá o que está escrito em João: “na verdade te digo que aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus” (3:3).
Este é o significado psicológico da “ressurreição” de Cristo – no sentido de ressurgir após a morte, não no sentido religioso – que representa o nascimento de uma personalidade mais abrangente que pode resultar da aceitação consciente da prova de crucificação, ou seja, simbolicamente é saber enfrentar os problemas de nossa realidade cotidiana e aceitar a realização de nosso ser, cumprindo assim nosso destino.
Para um dependente químico, livrar-se das drogas é o início de uma nova vida. Lidando com os problemas de uma maneira mais criativa e cultivando sua paz interna. Assim ele pode encontrar o tesouro que está em seu coração (Lucas 12:34) e viver uma vida realizada e plena de amor e abundância (o reino de Deus).
FREDERICO ECKSCHMIDT é psicólogo, especialista em dependência química e mestrando pela Faculdade de Medicina da USP. Possui pós-graduação em Social Health, pela Harvard University e é também é sócio-diretor do Núcleo Synthesis. Email: frederico@nucleosim.com.br