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Desde os anos 60, o mundo trata os entorpecentes como problema de polícia. nesse período, o consumo cresceu e a violência atingiu a todos – usuários ou não. será que a guerra às drogas ainda faz sentido?
O álcool faz mal à saúde. E não só à de quem bebe. Ele corrói famílias, causa acidentes e cobra uma alta conta do sistema público de saúde. Mas, como o álcool é uma droga legal, seu comércio gerou uma indústria saudável, que movimenta a economia como qualquer outro bem de consumo: rende impostos ao governo, lucro para empresas e empregos para quem quer trabalhar. A cada ano, a indústria global do pileque fatura US$ 450 bilhões.
A cocaína, a heroína e o ecstasy também fazem mal à saúde. E também giram um mercado que rende um belo dinheiro: cerca de US$ 330 bilhões por ano. Da ilegalidade, porém, germinou uma indústria doente: em vez de gerar impostos, o dinheiro dos narcóticos chega ao Estado sob a forma de propinas que fomentam a corrupção. O lucro do negócio é investido em armas que alimentam a violência. Em lugar de empregos, o tráfico oferece às crianças e jovens uma vida de crimes.
Parece fácil a solução, então: tratemos as drogas como tratamos o álcool. Há muita gente boa acreditando nisso: economistas, médicos, políticos. Mas, para cada defensor, existe uma opinião contrária. Afinal, ninguém sabe exatamente quais os efeitos da legalização: ela jamais foi plenamente colocada em prática. Quais drogas poderiam ser liberadas? O crime organizado e o tráfico perderiam força? O consumo aumentaria? Como isso afetaria a sociedade?
Dúvidas como essas terão espaço nesta reportagem. Mas parecem não existir na cabeça dos legisladores. Colocar as drogas na ilegalidade foi a solução sistematicamente adotada no século 20, em todas as partes do globo. Infelizmente, a lei não controlou o consumo – e há quem defenda que ela o aumentou. De quebra, nos jogou numa guerra contra traficantes, que por sua vez estão em guerra contra todos nós. “O dano que o vício dos outros causa em nós nasce quase completamente do fato de as drogas serem ilegais”, escreveu em 1972 o americano Milton Friedman, talvez o mais influente economista do século 20, vencedor do Prêmio Nobel e defensor da total legalização dos entorpecentes.
Por que proibir?
Discutir se as drogas devem ser legalizadas esconde uma questão anterior: por que proibi-las? Afinal, drogas sempre existiram. E, com raras exceções, sempre foram toleradas. A primeira política moderna para colocar os entorpecentes na ilegalidade nasceu nos EUA, em 1914, com o Ato de Narcóticos. Era uma reação aos crescentes problemas de dependência e overdose com ópio e cocaína, uma novidade num país tão religioso. Em 1918, o governo criou uma comissão para avaliar os efeitos da legislação. O grupo concluiu que: 1) um mercado negro havia surgido para atender à a procura pelas drogas; 2) esse mercado estava organizado nacionalmente para importar e distribuir o contrabando; e 3) o uso de ópio aumentara significativamente. Diante das evidências de que a proibição beirava o fracasso, o governo americano não teve dúvidas: aumentou mais ainda as restrições, passando de 5 para 10 anos a pena máxima por crimes relacionados a drogas – na década de 1950, esse limite chegaria à pena de morte. “A opção proibicionista tem uma motivação moral muito forte, influenciada pelas instituições religiosas”, diz Sean Purdy, professor de história americana na USP.
O ciclo que começou em 1914 – repressão aumenta o preço, que valoriza o tráfico, que estimula o consumo, que aumenta a repressão – iria se repetir, sob influência americana, pelo planeta. “Os EUA usaram sua posição privilegiada na economia para estabelecer vários programas de erradicação de drogas”, diz Purdy. Em 1961, os americanos conseguiram emplacar a assinatura de um pacto global contra as drogas na ONU. Com o acordo, o mundo achou que estava pronto para enfrentar o problema.
O documento ficou bonito no papel, mas não serviu para frear a história. A década, que começou com todos os países prometendo combater o uso de drogas, terminou com soldados americanos fumando maconha no Vietnã e hippies se entupindo de LSD mundo afora. Diante desse quadro, o presidente americano Richard Nixon resolveu lançar a Guerra às Drogas, como batizou sua política de tolerância zero com a venda e o consumo. Os resultados pífios fariam a Guerra no Iraque parecer um sucesso estratégico: a repressão às drogas mais populares da época serviu para a cocaína, que andava sumida, retomar a carreira de sucesso nos EUA – e dali para o mundo.
Assim nasceram os primeiros cartéis da Colômbia e megatraficantes como Pablo Escobar. Mas, enquanto as drogas viviam seu milagre econômico, o pesadelo social ganhava dimensões catastróficas. Nos EUA, a população carcerária de crimes relacionados a drogas pulou de 50 mil para 500 mil em 30 anos. Enquanto isso, o país chegava ao 10º lugar no ranking de consumidores. “Olhar para os EUA como modelo de combate às drogas é como se inspirar na política racial da África do Sul do apartheid”, escreveu Ethan Nadelmann, da Aliança para Políticas de Drogas, ONG que estuda o tema. No cenário mundial, a produção de drogas deu origem a narconações – a Colômbia com a cocaína, o Afeganistão com o ópio, o Marrocos com o haxixe e o Paraguai com a maconha – onde o comércio de drogas responde por uma parcela relevante da economia. “O problema é urgente e controverso. Mas não devemos nos negar a debatê-lo, porque a violência chegou a um ponto insustentável. A hora é agora”, disse Sergio Cabral Filho, ex-governador do Rio de Janeiro, o estado brasileiro que mais sofre com a influência desse comércio ilegal. Jamais um governador no Brasil havia falado em colocar fim à proibição às drogas. Para Cabral, existem alternativas. E talvez esteja na hora de experimentá-las. “Temos de estudar os prós e os contras de legalizar.”
As alternativas
Na década de 1970, o governo da Suécia estava preocupado com os costumes dos suecos. O país tinha fama de ser a capital mundial da troca de casais, era um dos centros hippies da Europa e, mais preocupante, via aumentar o consumo de drogas, em especial a heroína. O Parlamento reagiu à americana: baixou um decreto com ar megalomaníaco que pretendia resgatar valores morais e criar uma “sociedade livre de drogas para não apenas reduzir, mas eliminar o uso delas”. A pena para o consumo foi endurecendo gradativamente até chegar à cadeia. O resultado foi exatamente o previsto: deu certo. Hoje, os suecos não são mais conhecidos por emprestar a mulher para os amigos e consomem 2,5 vezes menos drogas do que nos anos 70. O número de usuários no país é 3 vezes menor do que a média europeia. A proibição funcionou.
Experiências tão contrastantes como as dos EUA e da Suécia são surpreendentes. A partir delas, porém, podemos tirar apenas duas conclusões: proibir drogas dá errado nos EUA e dá certo na Suécia. Daí para frente, restam suposições. Quais características desses países explicariam que a mesma ideia deu frutos distintos? “Na Suécia, a má distribuição de renda, que anda de mãos dadas com crimes como o tráfico, é baixa. E o desemprego é inferior à média europeia”, escreveu num estudo sobre a experiência sueca o português Antonio Maria Costa, diretor-executivo do Escritório de Drogas da ONU. Em outras palavras, por que um cidadão escandinavo vai se meter com o tráfico se sobram oportunidades de emprego e falta o sentimento de injustiça social? Costa também lembra que a Suécia não está no caminho de nenhuma rota internacional de drogas e que a população tem alto grau de escolaridade, o que colabora para o sucesso das campanhas de prevenção do uso.
A Suécia, porém, não é o único caso de sucesso no combate à heroína. Ali perto, a Holanda também foi invadida pela droga nos anos 70. A reação foi diferente, mas igualmente bem-sucedida. Os holandeses fizeram o seguinte raciocínio: boa parte dos usuários de drogas pesadas eram jovens que iam ao traficante em busca de maconha, mas acabavam comprando a heroína, que era oferecida no mesmo lugar. Assim, se a ligação maconha-heroína fosse quebrada, os jovens consumiriam apenas a 1ª, considerada pelo governo pouco nociva, em detrimento da 2ª, vista como um risco social. A ideia deu origem aos koffeshops, estabelecimentos onde o usuário pode escolher variedades da erva no cardápio. As drogas continuam na ilegalidade, mas, na prática, o país deixou de processar e punir quem consome maconha.
Resultado: o número de pessoas que já provaram maconha pulou de 15% para 34%. Mas o sucesso da política está no resultado do consumo de heroína – era esse o alvo, afinal. A Holanda é hoje um dos 10 países europeus com menos usuários da droga. A experiência holandesa é, também, o melhor indício que temos de que é verdade que a maconha serve de porta de entrada para o vício. Mas não por características intrínsecas dela, e sim porque a legislação a empurra a esse posto. Mais importante, mostrou que um mercado de drogas legalizado pode não ter efeitos catastróficos. Será, então, que legalizar as drogas é uma alternativa viável para combatê-las?
Vender droga é crime?
Imagine que o comércio das drogas fosse explorado por empresas, com fiscalização séria e punições para quem não cumprisse a lei – nada de “liberou geral”. O comércio aconteceria apenas em locais autorizados – e as drogas mais perigosas seguiriam o modelo dos remédios controlados: venda regulada. Quem comprasse demais seria convocado por uma junta médica para avaliar a necessidade de tratamento. Para o governo, as drogas deixariam de ser prejuízo para se tornar fonte de renda. Em vez de gastar com a repressão, ele arrecadaria impostos. O dinheiro poderia ser investido em prevenção, tratamento e na fiscalização do mercado. A polícia estaria livre para resolver crimes mais relevantes. O polígono da maconha, em Pernambuco, deixaria de ser uma das regiões mais pobres e violentas do país para finalmente encontrar sua vocação econômica: a agricultura da Cannabis sativa. E o tráfico de drogas que domina as favelas do Rio morreria tão naturalmente quanto o mercado de máquinas de escrever: ninguém mais se interessaria pelos produtos do Comando Vermelho.
O economista Gary Becker, Nobel de 1992, e outros dois colegas da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, fizeram contas e desenharam como seria esse mundo na prática. No estudo A Teoria Econômica dos Bens Ilegais: O Caso das Drogas, de 2004, concluíram que é mais eficiente controlar o consumo de drogas via legalização, porque ela é muito mais barata que a proibição. Para Becker, o único entrave ao início dessa nova era é a opinião pública: o estudo não deixa dúvidas de que a classe média seria a mais prejudicada. “A proibição beneficia as famílias mais ricas, porque mantém seus filhos afastados da oferta. Ela só não é boa para os pobres, que moram nas regiões de tráfico e estão mais suscetíveis a trabalhar para o crime”, afirma. A legalização inverteria esse quadro: com a maconha vendida em toda esquina, seria mais fácil para um universitário comprá-la. E, como aconteceu na Holanda, Becker concorda que essa superoferta aumentaria o consumo. “Haveria, sim, um aumento da procura por drogas”, diz. E é exatamente nesse ponto que se batem os críticos da legalização. “Se as pessoas consumirem mais, haverá uma desorganização social enorme”, diz Luis Carlos Magno, delegado do Departamento de Narcóticos da Polícia Civil de São Paulo.
Chegamos, então, ao seguinte dilema: Becker e Magno concordam sobre as consequências da legalização – ela trará aumento no consumo. Mas discordam sobre como o poder público deve se posicionar frente à questão. Isso faz todo sentido. Afinal, imaginar um mundo sem drogas é uma ideia sem parâmetro na história. E droga é como sexo: abstinência é a melhor maneira de prevenir problemas, mas pragmaticamente falando, esse objetivo é inalcançável. Ou seja: quando discutimos se legalizar ou proibir é a melhor opção, estamos colocando problemas na balança e escolhendo qual caminho é o menos ruim. Qual deles é capaz de reduzir mais o custo social da droga, ou a soma de todos os malefícios que ela causa. Há ainda os valores morais: drogar-se é um direito individual ou uma questão coletiva? Como em cada país esses problemas têm um peso diferente, a receita ideal pode variar.
Peguemos o exemplo que mais nos interessa – o Brasil. Quais as consequências da legalização? Primeiro problema: se mais pessoas usarem drogas, precisaremos de um sistema de saúde que absorva dependentes. Mas, hoje, “o acesso a tratamento para dependentes químicos é muito pequeno, mesmo para atender apenas os de álcool e tabaco”, diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, da Unidade de Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pedro Delgado, coordenador do Programa de Saúde Mental do Ministério da Saúde, responsável pelo atendimento a viciados, reconhece: “Ainda estamos longe da cobertura ideal”. Talvez chegássemos lá com o extra que a legalização traria sob forma de impostos? “O imposto do tabaco e do álcool já deveria cumprir essa função. E não é o que acontece hoje”, diz Magno.
Outro argumento contrário à legalização é que liberar apenas as drogas leves, como a maconha, praticamente não atrapalharia o poder dos traficantes – a erva representa um lucro marginal para eles. “A droga que movimenta dinheiro é a cocaína”, diz Sérgio Trivelin, chefe da Delegacia de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal em São Paulo. Ao legalizar a cocaína, porém, teríamos de conviver com outro tipo de violência: a dos usuários. “Cocaína é uma droga associada ao comportamento violento. Se ela fosse legalizada, provavelmente aumentaria o número de crimes cometidos para conseguir a droga”, avalia Laranjeira. E muitos duvidam que a legalização acabe com o crime organizado. “Se a polícia não estiver preparada, os criminosos se reorganizarão em outras atividades. Com o poder de fogo que têm nas mãos, eles vão tentar fazer dinheiro de outra maneira”, diz o deputado federal Fernando Gabeira. Não acabaria com a violência, mas acabaria com o poder do tráfico nas favelas, respondem os defensores da legalização. E não ter bandidos armados controlando as favelas, seduzindo meninos, é um enorme avanço.
Moral da história: legalizar é uma ideia tão sedutora quanto polêmica – existem incertezas entre a nossa realidade e todos os benefícios que ela promete. Mas, quando se discute drogas, há duas questões bem distintas. Uma coisa é o debate sobre a proibição da venda. Outra coisa é condenar quem compra. Será que devemos punir alguém por usar drogas?
Comprar droga é crime?
Não é difícil entender por que matar é crime. O mal que um assassino faz a outra pessoa é evidente. Puni-lo obedece a uma lógica simples. Mas, quando alguém toma droga, só faz mal a si mesmo. Então por que prender? “O Estado entende que o indivíduo não sabe o que é bom para sua saúde e limita seu direito de decidir o que fazer. Tira a liberdade do cidadão antes que ele perca sua liberdade porque virou um viciado”, explica o advogado criminalista Miguel Reale Jr., ex-ministro da Justiça e ex-chefe da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad). Para Reale, o Estado trata as drogas da mesma maneira que o cinto de segurança: cria uma lei com o objetivo de proteger o cidadão de si mesmo. O problema é que o risco diz respeito à minoria. Segundo o relatório de drogas publicado pela ONU este ano, cerca de 200 milhões de pessoas usam drogas no mundo. Apenas um oitavo delas tem problemas de dependência. Para os outros sete oitavos de usuários ocasionais, a lei é mais perigosa que a droga. Mesmo no Brasil, onde não está mais prevista a pena de prisão, quem for flagrado com maconha ou ecstasy e condenado como usuário passará a ter uma ficha criminal e perderá os benefícios concedidos aos réus primários. “Isso só serve para estigmatizar e dificultar a vida da pessoa. Fica difícil, por exemplo, arrumar um emprego”, diz Reale, defensor da ideia de que o uso de drogas não deva ser considerado crime.
Os críticos da descriminalização acreditam que ela pode aumentar o número de usuários ou a intensidade com que eles se drogam. Essa situação, porém, não aconteceu em nenhum dos países que adotaram a política. Na Itália e na Espanha, o consumo de heroína aumentou, é verdade. Mas na mesma intensidade que na Alemanha, que continuou punindo usuários. Por trás dessa equação estão evidências de que a punição do usuário não desestimula significativamente o consumo. Se por um lado o medo de ser pego afasta alguns, a imagem do fruto proibido alicia outros, principalmente jovens. Para os americanos Robert MacCoun e Peter Reuter, autores de Drug War Heresies (“Heresias na Guerra das Drogas”, sem edição no Brasil), “mudanças na repressão ao usuário podem ter consequências surpreendentemente pequenas”. Em outras palavras: legalizar a venda aumenta o consumo. Mas proibir o consumo não serve para reduzi-lo.
No caso do dependente, a punição ao usuário é ainda mais contraditória. A compulsão por uma nova dose é maior do que a capacidade de controlar esse impulso. E o que reduz mais os custos sociais: cadeia ou tratamento médico? A Organização Mundial da Saúde (OMS), por exemplo, defende que a droga seja combatida, mas punir o usuário não traz vantagens para a sociedade. “Quando alguém decide usar cocaína, não decide ser criminoso. É a sociedade que o empurra para a margem. E isso, sim, é perigoso, porque ele sai do controle social”, diz Mônica Gorgulho, da Associação Internacional de Redução de Danos, que defende o fim das punições para usuários de drogas.
A política de não punir o usuário criminalmente hoje é aplicada em países como Portugal, Espanha, Bélgica e Finlândia. A nova lei de drogas brasileira, que entrou em vigor em 2006, também avançou nessa direção, mas não estabelece uma quantidade para distinguir usuários e traficantes, como acontece na Europa. “Para o usuário ocasional, a vantagem é não correr o risco de ser preso. Para o dependente, é poder lutar por um tratamento”, diz o psiquiatra Dartiu Xavier, da Unifesp. Para quem não usa drogas, o benefício está na diminuição do tabu sobre o tema. Hoje, políticas de redução de dano – aquelas que partem do princípio de que drogas são consumidas e devemos trabalhar para elas fazerem menos mal – estão praticamente congeladas. “Desde o fim dos anos 90 o governo federal não faz mais campanhas de esclarecimento sobre uso de drogas porque acha que falar sobre isso aumenta a curiosidade e o consumo. Isso é medieval, é apostar na desinformação”, diz Walter Maierovitch, juiz aposentado e primeiro titular da Senad.
Para onde vai esse barato?
No que depender dos EUA, a proibição total das drogas vai continuar sendo a política dominante. A estratégia para o ano que vem é a mesma dos últimos 100 anos: guerra. Em 2008, o conflito terá orçamento de US$ 13 bilhões. Desse total, 65% combaterão o tráfico – a prevenção do consumo levará apenas 12% do bolo. Apesar de alguns países europeus adotarem políticas mais tolerantes com os usuários, ninguém por lá parece querer comprar briga séria com os americanos. A convenção da ONU de 1961 continua reinando, e a legalização não está na pauta de qualquer país. Até mesmo a Holanda atualmente trabalha para diminuir a ação dos koffeshops, sob pressão de países vizinhos e de um governo conservador.
No Brasil, caminhamos em outra direção. A legislação hoje está se abrandando. “Nossa política está orientada para diminuir as punições ao uso de drogas”, diz o general Paulo Uchoa, chefe da Senad. Apesar de ser contra a descriminalização e a legalização, ele diz o que muitos de seus opositores gostariam de ouvir. “A meta não é erradicar o consumo, mas que ele seja feito com responsabilidade”, diz. Até o nome da secretaria está de mudança: o confrontador “antidrogas” dará lugar a um conciliador “sobre drogas”. Mas ainda falta uma coisa fundamental para a formulação de qualquer política pública nacional: informação.
“A gente precisa levantar dados a partir de modelos científicos sérios. Sem essa visão, a discussão fica baseada no chute”, diz Nanci Cárdia, do Núcleo de Estudos da Violência da USP. “Para levantar dados sobre a violência derivada do tráfico, por exemplo, a gente depende da polícia. Mas é muito difícil ter essa colaboração.” Por incrível que pareça, nem o Ministério da Saúde nem o Ministério da Justiça, duas pastas diretamente afetadas pela questão, possuem qualquer estudo sobre o impacto das drogas no seu orçamento, o que mostra como o Brasil ainda está longe de compreender a dinâmica e o tamanho do problema. A falta de preparo das nossas instituições fez até Fernando Gabeira, histórico defensor da legalização, mudar de lado. “A maconha deve ser legalizada, mas só quando o Estado estiver preparado para isso. Não é possível conduzir a legalização sem uma polícia eficaz”, afirma. “Quanto a legalizar outras drogas, a decisão deve depender da experiência com a maconha.” Para Gabeira, a polícia é tão importante nessa equação porque legalizar não é uma renúncia ao controle, mas um salto de qualidade no controle.
É importante, porém, não cair no histórico equívoco brasileiro de acreditar que mudar a lei é solução para todos os problemas. Independentemente de proibir, legalizar ou descriminalizar, a melhora da segurança urbana pode ser alcançadas com ações sociais consistentes. A Colômbia, por exemplo, usou essa estratégia para se afastar dos tempos em que era conhecida por Locômbia. Nas comunidades pobres de Medellín, onde Pablo Escobar já foi rei, alguns índices que medem a violência caíram 70%. Como eles fizeram isso? Oferecendo água potável, luz elétrica, esgoto, transporte público, projetos educativos e profissionalizantes para populações carentes.
O ex-governador Sérgio Cabral Filho foi ao país andino, na época, para conhecer essas ações. Prometeu se inspirar nos trabalhos realizados e apresentou projetos para isso. Porém, a ação mais notável de sua administração foi uma guerra de mais de 60 dias no Complexo do Alemão, uma das maiores favelas do Rio de Janeiro. Na troca de tiros, 44 pessoas morreram. Outros 56 mil moradores tiveram sua rotina interrompida: uns não puderam ir ao trabalho, outros foram, mas tiveram medo de voltar, quase todos perderam o sono com os tiroteios. Os maiores prejudicados pelo conflito foram os que nada tinham a ver com o tráfico. Como a maior parte dos habitantes deste planeta, faziam parte de um contingente que, se não fosse a vizinhança, resumiria sua relação com as drogas ao cafezinho que acompanha o pão com manteiga de manhã.
Fonte: Tarso Araujo – publicado originalmente na Revista Superinteressante, edição 244