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Nos últimos 50 anos, muita coisa mudou no jeito de encarar – e tratar – o alcoolismo no Brasil. Em primeiro lugar, o conceito de alcoolismo como doença, e não como um problema moral, se solidificou. Por outro lado, o jeito de cuidar do problema ganhou novas nuances. Se antes a própria Organização Mundial de Saúde (OMS) admitia como único caminho para a reabilitação a abstinência, hoje o Ministério da Saúde no Brasil trabalha com uma política de redução de danos estratégica, que admite que a recaída faz parte do tratamento. Do ponto de vista farmacológico, três novos medicamentos atuam como importantes coadjuvantes na luta contra a doença. Se as opiniões sobre a melhor forma de recuperar o alcoólico se dividem, a boa notícia é que há mais caminhos para a reabilitação.
A trilha mais conhecida e antiga dessa jornada são os Alcoólicos Anônimos (AA), grupo de autoajuda que surgiu há 80 anos e está presente em 180 países. Formado por homens e mulheres que compartilham experiências a fim de resolver um problema em comum, a dependência do álcool. “Nos últimos 50 anos, o respeito ao trabalho do AA, que começou tímido, cresceu muito, ainda que os princípios continuem os mesmos”, afirma o psiquiatra Arthur Guerra, coordenador do grupo de estudos de álcool e drogas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Centro de informações sobre Saúde e Álcool (Cisa).
Ali, a questão central na tentativa de vencer a doença passa pela abstinência. A própria organização calcula que cerca de 2 milhões de alcoólicos alcançaram a sobriedade frequentando suas salas de reunião, mas reconhece que o método nem sempre é eficaz com todos os dependentes. O funcionário público M.A. é alcoólatra em recuperação. Na reunião do AA, ele agradece “ao poder superior” por, naquele dia, não ter feito uso de bebidas. “Vim aqui depois de uma fase quase terminal e de dois meses em coma. Tinha perdido tudo, era objeto de desprezo. Hoje, faço parte da sociedade de novo”, comemora.
De 1965 para cá, a ciência e a medicina ainda não conseguiram explicar por que alguns indivíduos são mais vulneráveis que outros ao uso de álcool e outras substâncias psicotrópicas. Mas uma coisa é certa. A visão de que o dependente do álcool é uma pessoa de caráter fraco, que não para de beber porque não quer, mudou radicalmente. O psiquiatra Frederico Garcia, coordenador do Centro Regional de Referência em Drogas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica que o álcool altera o circuito da recompensa no cérebro, modificando o controle da impulsividade e formando uma memória que leva a um sintoma que aumenta a “fissura” de consumir. De acordo com ele, o tratamento de um dependente químico dura de três a cinco anos e é marcado pelas recaídas, que vão se tornando menos frequentes.
A empregada doméstica O. M., de 51 anos, é dependente química de álcool e cocaína. Ela começou a beber aos 28 anos. Durante oito anos, trabalhava durante o dia e, à noite, bebia e usava cocaína. “A galera fazia vaquinha. A gente ia bebendo e comprando a droga. No começo era bom. Depois, passei a ser excluída, meus vizinhos e até meus filhos me viraram as costas”, recorda, com tristeza. Agora, ela frequenta o Centro de Referência em Saúde Mental em Álcool e Drogas (Cersam AD Barreiro) – nome dado pela Prefeitura de Belo Horizonte ao Centro de Apoio Psicossocial (Caps AD), criado pelo Ministério da Saúde – e tenta se manter abstêmia, o que vem conseguindo há dois meses. “No início tive recaídas. Essa é a primeira vez que estou tentando um tratamento”, revela. A psicóloga Kelly Patrícia Lima Nilo, gerente do Caps AD/Cersam AD, explica que a redução de danos oferece ao dependente químico um tratamento dentro do que ele é capaz. “Ele aceita reduzir o consumo e ficar o dia inteiro sem beber? O próprio usuário vai dizer se dá conta”, explica.
Segundo a psicóloga, o alcoolismo está presente em quase todos os outros casos de dependência química. “Ou ele vem primeiro, ou aparece depois. Por ser uma droga legal, muito tolerada e estimulada socialmente, as pessoas demoram a perceber que precisam de ajuda”, observa. Ela explica que quando uma família percebe que um de seus membros está usando cocaína ou crack, todos se mobilizam, mas com o álcool é diferente. “A pessoa extrapola o uso e o momento da ‘virada’ não é percebido. Quando o problema é identificado, já avançou muito”, diz a psicóloga. O auxiliar de serviços gerais José das Graças Jesus, de 65, começou a beber aos 9 anos. Depois de tentar se matar em quatro ocasiões, foi encaminhado ao Cersam/Caps e está sóbrio há seis meses. “Fui internado muitas vezes e não suportava ficar preso. Depois que passei a vir aqui, nunca mais bebi”, comemora.
Do ponto de vista não farmacológico, o tratamento do alcoolismo mudou de foco da década de 1960 para cá. Se antes a linha era baseada na psicanálise, hoje a abordagem é comportamental. “Qualquer pessoa que bebe desenvolve determinados padrões de comportamento. O que ela bebe e como bebe vai estereotipando seu comportamento. Por isso, os especialistas hoje não estão preocupados em saber apenas por que o alcoólico bebe, mas o que e como bebe”, diz Sérgio Nicastri, psiquiatra do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
No campo farmacológico, há mais opções. No passado, a única via de tratamento era o dissulfiram, que, quando ingerido, faz com que pequenas doses de álcool provoquem efeitos extremamente desconfortáveis. Ele funciona como um freio psicológico diante do primeiro copo. Atualmente, porém, há medicações que reduzem a vontade de beber interferindo na ação do álcool no cérebro e reduzindo os efeitos agradáveis da bebida. É o caso da naltrexona, do acamprosato (usado na Europa) e do topiramato. De acordo com o psiquiatra e homeopata Aloísio Andrade, a homeopatia também oferece medicamentos eficientes, como o Sulphuric acid, que atua nos mesmos receptores cerebrais que o álcool, reduzindo a vontade de beber, e as substâncias que combatem a ansiedade e alimentam o ânimo.
Uma coisa que não muda, porém, é a maneira como o alcoolismo afeta as pessoas que convivem com os dependentes da bebida. É o que mostra o Al-Anon, grupo criado para amparar a família e os amigos de dependentes do alcoól. Os encontros são como os do AA, em locais onde geralmente há grupos para os alcoólicos, mas em dias e horários distintos. Na internet, a página do Al-Anon tem a seguinte frase: “O alcoólatra bebe e a família é que fica tonta”. A professora aposentada M. F. M, de 61 anos, hoje viúva, sabe bem disso porque conviveu com o marido dependente por três décadas. Para ela, alcoolismo é doença de família. “É muito difícil conviver com alguém nessa situação. Você não tem paz, não tem segurança. Vai a uma festa e tem medo do que ele pode aprontar. Meus filhos não levavam os amigos em casa porque tinham vergonha do pai”, lembra.
Para o psiquiatra Arthur Guerra, uma das mudanças no tratamento do alcoolismo é o envolvimento dos familiares no processo, que hoje é realidade e em 1965, quando a reportagem da revista O Cruzeiro foi publicada, praticamente não existia. Somente quando passou a frequentar a Al-Anon foi que M. F. conseguiu mudar seu comportamento diante do marido. “Aprendi a não brigar com ele e não levar as ofensas em consideração. Desliguei a pessoa da doença e passei a tratá-lo com compaixão, mas com distância emocional, que é muito importante”, diz a professora, que quatro anos depois da morte do marido continua a frequentar a entidade junto com um dos filhos. “Alguns dos meus filhos fazem terapia para tratar dos problemas que vieram de um lar alcoólico, mas todos têm curso superior e estão bem. Tocamos a vida”, declara.
Fonte: Saúde Plena