História de conquistas do tabaco pode estar no fim

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Fumar é uma atitude tão comum que ninguém nota como esse gesto é peculiar. Afinal, trata-se de inalar fumaça, algo repulsivo para outros animais. Mas, entre nós, fumar tornou-se tão familiar que algumas cenas cotidianas pareceriam inverossímeis sem umas tragadas. O que seria do cinema sem o cigarro nas cenas de sexo? E dos soldados, sem uma bituca para as longas horas de guarda? Sem falar dos gestos arquetípicos, como distribuir charutos para comemorar um nascimento.

Fumar tornou-se inerente ao ser humano. Onde há fumaça, provavelmente haverá um dos 1,2 bilhão de fumantes do mundo, e vice-versa. Tudo graças a uma planta descoberta há cerca de 500 anos na América. Sim, o tabaco, a planta que recheia cigarros, cachimbos e charutos, é originário da América e era desconhecido pelos europeus até 1498. Desde então, o consumo mundial só fez crescer, espalhar-se e sofisticar-se.

Mas a história de conquistas pode estar no fim. O cerco ao tabaco já reduziu o consumo nos países ricos e será reforçado nos demais. O último nó no torniquete em torno da indústria tabagista ocorreu no mês passado, quando 192 países aprovaram um tratado da Organização Mundial da Saúde (OMS) que prevê controle sobre o comércio de cigarro, limites à propaganda, aumento de impostos e divulgação dos malefícios que ele causa. No Brasil, as regras acrescentam pouco ao que já existe: a propaganda foi banida, o imposto é alto, os maços trazem alertas de saúde e a nomenclatura “light”, ideal para capturar ex-fumantes, foi proibida. Mas em muitos países o tratado, que precisa ser transformado em lei para vigorar, será um avanço.

Assim, pode ser que em 20 anos o mundo veja pela primeira vez uma queda no número de cigarros consumidos no planeta, hoje em torno de 5,5 trilhões de unidades por ano. Até hoje, esse número só cresceu, embora na última década o crescimento tenha sido menor, graças a restrições em países de grande consumo. Mas essa redução foi compensada pela abertura de novos mercados. Em Taiwan, onde até 1990 só era vendida uma marca local, o consumo entre estudantes cresceu 50% depois que as grifes americanas acionaram suas táticas de marketing. Boa parte dessa gente não sabe que o cigarro causa doenças. Em 1996, uma pesquisa na China, onde se consomem 30% dos cigarros do mundo, revelou que 61% da população achava que o vício causa pouco ou nenhum dano à saúde. É um mercado mal explorado e mal regulado. É esse tipo de exploração que o novo tratado deve barrar.

Não se sabe quando isso vai acontecer. Mas é certo que se acabaram os dias de glamour do cigarro, em que ele era associado a sedução e poder, em uma incrível história de construção de imagem que começou há 8 mil anos, no Peru, com o primeiro cultivo. Quando os espanhóis chegaram, 7 500 anos depois, a planta já se espalhara pelo continente, como afirma Iain Gately, autor de Tobacco (“Tabaco”, inédito no Brasil), sobre a história da planta.

Na América, diz ele, as folhas eram fumadas, cheiradas na forma de rapé (tabaco em pó), mascadas e até usadas como supositório. A principal razão para o consumo era mística: o tabaco permitia um contato com espíritos. Mas outras funções eram atribuídas à planta. Seu efeito levemente analgésico e antisséptico era indicado para dores de dente ou feridas, e todo doente recebia baforadas. A fumaça também marcava os eventos sociais, como as guerras. Entre os índios norte-americanos, fumava-se o cachimbo da guerra antes das batalhas. Quando a peleja terminava, era hora de tragar o cachimbo da paz. Mas também usava-se o tabaco por prazer, pela agradável sensação de alerta e de energia que a planta dá ao corpo.

Mas fora das tribos a planta nunca foi unanimidade. O navegador espanhol Rodrigo de Jerez, o primeiro europeu a fumar, logo percebeu isso. De volta à Europa, ao fumar em público, foi preso por três anos. O hábito era considerado uma selvageria. Além disso, os europeus notaram que a planta capturava a vontade humana. “Não está em seu poder evitar o hábito”, disse Colombo, ao notar a avidez dos marinheiros pela planta. Os europeus não sabiam o que era vício e não entendiam o simbolismo indígena do tabaco. Na verdade, eles pouco entendiam dos índios. A começar da língua. Tanto que a palavra tabaco vem de dattukupa, que significa “nós estamos fumando”, em um dialeto indígena. Os europeus achavam que era o nome da planta.

Mas aos poucos a erva ganhou adeptos. Logo notou-se que ela afetava o corpo, o que atraiu a curiosidade médica. E foi para divulgar a nova medicina que o médico e diplomata Jean Nicot enviou as primeiras sementes à rainha da França, Catarina de Médici. Em sua homenagem, a planta foi batizada como Nicotiana tabacum. Em pouco tempo, tabaco virou remédio para tudo, indicado para crianças que comem muita carne, para pedra no rim e até para tratar mordidas de tigre.

Em 50 anos o tabaco conquistou o mundo. Em 1542, já havia samurais fumando. As tribos africanas costeiras adoraram a planta e a levaram às aldeias interioranas séculos antes de os primeiros brancos chegarem lá. Nem o islamismo impediu sua circulação e a planta foi admitida nos países árabes, onde o álcool era proibido.

A prosperidade do tabaco contrastava com a de seus descobridores. Na América, a vida dos pioneiros ingleses instalados nos Estados Unidos ia mal. A expectativa de vida era de míseros seis meses. Tudo mudou em 1612, graças ao colonizador John Rolfe. Ele trouxe mudas de tabaco, que começou a cultivar na recém-instalada colônia da Virgínia. No mesmo ano, casou-se com a princesa índia Pocahontas. Com a ajuda da tribo dela e a venda da erva, a colônia tornou-se sustentável. A colheita de 1618 foi de 9 toneladas. No final do século, subira para 17 mil toneladas. Tabaco era o principal produto de exportação e razão de ser da comunidade, a ponto de virar moeda. Comprava-se de tudo com a planta, de refeições a esposas. Não por acaso, a primeira lei da assembleia dos colonos tratava da erva: determinava um preço mínimo. Muitas figuras históricas americanas envolveram-se com a planta. A família de George Washington, o primeiro presidente, vivia do comércio da erva.

E Thomas Jefferson, autor da declaração de independência dos Estados Unidos, era um fazendeiro de tabaco.

Na Europa, a planta invadia o cotidiano. A primeira forma de uso a popularizar-se foi o rapé, e as caixinhas onde os homens traziam o pó eram uma marca pessoal. Seu desenho e os modos de seu dono ao abri-la distinguiam sua classe social. Na Inglaterra, a moda envolvia o cachimbo, considerado tão sedutor que as mulheres exigiam que o marido o largasse depois de casar.

A associação do tabaco com sexo foi uma invenção européia. Na Espanha, a Tabacalera, a indústria estatal que chegou a ter o maior prédio industrial do mundo, contratava ciganas para fabricar charutos. No calor mediterrâneo, elas trabalhavam em roupas diminutas. Aquilo virava a cabeça dos escritores, entre eles o francês Prosper Mérimée, autor de Carmen, que depois seria imortalizada na ópera homônima. Carmen fumava papelotes, que se popularizaram na França, onde foram rebatizados de cigarettes (como os cigarros são conhecidos também em inglês).

A oposição ao tabaco crescia com seu consumo. Um dos mais notórios oposicionistas foi o rei inglês James I, do século 17. “Fumar é um costume repulsivo para os olhos, detestável para o olfato, daninho para o cérebro, perigoso para os pulmões”, dizia. Mas ele foi ignorado. O imperador otomano Murad IV proibiu o fumo e, para fiscalizar, vestia-se de mendigo e implorava por umas baforadas. Quem dava tabaco a ele era decapitado. Estima-se que 25 mil foram mortos em 14 anos. Nem os colonos americanos livraram-se da sanha reguladora. As colônias ao norte dos Estados Unidos, fundadas pelos quackers, uma gente puritana e centrada no trabalho, não gostavam daquela planta. Logo surgiram proibições.

Apesar disso, o comércio prosperava. O tabaco foi um dos primeiros produtos a desenvolver marcas comerciais. Na primeira metade do século 18, esse conceito sofisticou-se e o produto passou a ser vendido com embalagens e slogans. Um grande impulso veio em 1880, com a invenção da máquina de fazer cigarros. James Buck Duke, um americano que vendia a erva, comprou duas máquinas e inovou não só a fabricação, mas também a venda, gastando 20% de seus lucros em propaganda. Logo dominou o mercado. Os cigarros eram mais práticos e mais saborosos, e o consumo de tabaco cresceu 50% nas duas últimas décadas do século 19.

O crescimento da indústria coincidiu com uma nova onda de oposição ao fumacê. As pessoas começavam a perceber que cigarro e doença andavam juntos e no final do século 19 a venda para jovens foi proibida na Inglaterra e nos Estados Unidos. Não era sem tempo. Algumas décadas antes, estudantes ingleses levavam à escola um cachimbo cheio e tinham aulas de fumo.

Nos Estados Unidos e na Inglaterra, as indústrias locais, após anos disputando o mercado, se uniram. Nos Estados Unidos, nasceu a American Tobacco Company, que Duke presidiu. Na Inglaterra, surgiu a Imperial Tobacco Company. Logo as duas perceberam que também não valia a pena disputar entre si e chegaram a um acordo: cada uma cuidaria de seu quintal, e as duas criavam a British American Association (BAT), para explorar os mercados do mundo todo. Uma das primeiras aquisições da BAT foi a empresa brasileira Souza Cruz, criada em 1903 pelo imigrante português Albino Souza Cruz.

A Primeira Guerra Mundial transformou o público consumidor ao introduzir as mulheres no mercado de trabalho. Uma das primeiras marcas lançadas para elas foi o Marlboro, que décadas depois seria associado à macheza do cowboy. Em pouco tempo, as mulheres descobriram que o gesto de fumar poderia ser uma nova forma de sedução. E as empresas glamourizaram ao máximo as baforadas femininas.

O cinema foi uma bênção para os fabricantes de cigarro e o associou ao sexo de uma vez por todas. Como não se podia nem exibir beijos na tela, os insinuantes gestos femininos ao fumar substituíram as cenas picantes. Toda estrela tinha pelo menos uma foto no portfólio segurando um cigarro. Aos poucos, a associação cinema-cigarro profissionalizou-se: entre 1978 e 1988, 188 atores e diretores receberam cachê para incluir baforadas nos filmes. Em 1988, o governo americano proibiu a prática, mas a exposição do cigarro na telona continuou. Uma análise dos 250 filmes americanos mais populares da década de 90 mostrou que 87% deles exibiam alguém fumando.

Atualmente morrem 3,5 milhões de pessoas por ano vítimas do fumo. Em 2030, serão 10 milhões. Mas, até a década de 50, ninguém sabia disso. Foi então que surgiram as primeiras pesquisas associando o tabaco ao câncer de pulmão. Em 1962, o governo inglês anunciou que o cigarro fazia mal. A indústria respondeu de várias formas. Uma delas foi o lançamento de produtos supostamente menos agressivos, como o cigarro com filtro. Outra foi abandonar de vez qualquer alusão à saúde e realçar o sabor dos produtos. A imagem passou a contar como nunca. Foi quando os logotipos das marcas de cigarro começaram a aparecer nos carros de corridas.

Por fim, as indústrias descobriram o consumidor de ouro: o adolescente. Segundo uma pesquisa feita em 1977 pela BAT, “a instalação do hábito de fumar é um fenômeno adolescente. O hábito se instala principalmente aos 15 ou 16 anos”. Quanto mais cedo começa, maior a chance de fumar por 30 anos ou mais. Era vital atingir tal público. A indústria sempre negou mirar os jovens, mas alguns documentos secretos que vieram à tona indicam que se discutia muito a importância desse público. No Brasil, 90% dos fumantes compraram o primeiro maço na adolescência.

Controlar a divulgação de um hábito é difícil, ainda mais se quem lucra com ele tem dinheiro para promovê-lo de formas não controladas, como no caso do cigarro. Muitos países baniram anúncios na TV, mas as pessoas continuavam aparecendo fumando na TV, em novelas e filmes. Em 1998, metade dos britânicos entrevistados em uma pesquisa disse ter visto um anúncio de cigarros na TV nos seis meses anteriores, embora eles estivessem banidos desde 1965.

Outro caminho adotado pelos governantes para controlar a indústria foi a Justiça. Mas as evidências ligando o fumo a doenças eram estatísticas, epidemiológicas. Para vencer uma ação contra as empresas era preciso provar que uma coisa causava a outra, e isso era difícil. As empresas só foram perder ações na Justiça americana na década de 90. No Brasil, há muitos casos de vitórias em primeira instância, mas ninguém recebeu nada, porque as empresas sempre recorreram. Em 1998, acuada por todos os lados, a indústria fez um acordo com 46 estados americanos, prometendo pagar 246 bilhões de dólares em 35 anos, para cobrir os custos com fumantes doentes.

Em 1776, Adam Smith, o pai da economia moderna previu: “Rum, açúcar e tabaco não são produtos vitais, mas têm grande consumo, o que faz deles objetos ideais para taxação”. Dito e feito: o cigarro até hoje é fonte de receita para o governo. Na Inglaterra, o imposto morde 80% do preço do maço, teoricamente para custear o controle do hábito e o tratamento de doenças. Mas essas tarefas consomem só 16% do bolo. No Brasil, o imposto equivale a 70% do preço final, e o cigarro é o produto industrializado que mais paga imposto, o que faz da Souza Cruz o maior contribuinte industrial privado do país e do Brasil um dos países em que o cigarro tem maior importância na receita fiscal. No total, o governo arrecada 6 bilhões de reais, dos quais 2 bilhões são gastos com a saúde dos fumantes.

Aumentar os impostos diminui o uso. Estima-se que, para cada 10% de aumento no preço, o consumo caia 8%. O problema é o contrabando, que muitas vezes já é incentivado pela indústria. Por aqui, o contrabando começou na década de 90 e atualmente responde por um terço dos cigarros vendidos. Isso apesar de o cigarro brasileiro ser um dos mais baratos do mundo.

Mas, se os malefícios do cigarro são tão conhecidos, por que ainda há tantos fumantes? Bem, a primeira baforada deve-se ao marketing do cigarro. Outras a sucedem porque a nicotina vicia mais que a cocaína. Segundo o médico Daniel Deheinzelin, do Hospital do Câncer de São Paulo, com apenas sete a 14 dias de uso contínuo o fumante está dependente. Já largar o cigarro é difícil. Só 3% das pessoas que tentam abandonar o cigarro conseguem fazê-lo, geralmente após tentar cinco vezes. E olha que não é pouca gente tentando ficar longe da fumaça: 80% dos fumantes brasileiros dizem querer parar.

A fórmula mais eficaz para chegar lá é usar três armas combinadas. 1) Medicamentos que reduzam a abstinência, que podem ser de dois tipos. Os primeiros são os antidepressivos, que reduzem a ansiedade. Os outros são os repositores de nicotina, vendidos em adesivos ou chicletes. Eles fornecem nicotina suficiente para evitar a abstinência, mas não contêm alcatrão, que é o mais nocivo. 2) Psicoterapia, para identificar as situações em que há risco de fumar e ajudar a enfrentá-las. 3) Apoio dos amigos e da família. Mesmo assim, só um quarto dos pacientes consegue largar de vez. A maior parte das recaídas ocorre em três meses.

Mas será que a abstinência é a única forma de reduzir os danos à saúde? Não. Na Suécia, consome-se há décadas o snus, um tipo de tabaco umidificado. Seu segredo é que o snus não é fumado (na fumaça é que está a maioria dos males do cigarro). Tampouco é mastigado, o que costuma produzir câncer na boca e na faringe. Snus é para ser colocado entre o lábio e a gengiva e sugado, aos poucos. Hoje há mais suecos usando snus (19%) do que fumando (17%). Coincidência ou não, os suecos têm a menor taxa de câncer de pulmão da Europa e o menor risco de morte por doenças ligadas ao fumo. Mas o snus não é saudável. Ele aumenta o risco de doença cardiovascular em 40%. Mas isso é menos que entre fumantes. Mesmo assim, as autoridades de saúde acham que oferecer uma forma mais segura de tabaco poderia erroneamente enviar a mensagem de que é saudável consumi-lo. Graças a essa visão, a venda do snus é ilegal fora da Suécia.

Pode parecer estranho chupar um saquinho de tabaco, mas a estranheza não é maior do que a que tiveram os europeus quando viram os índios soltando fumaça pela boca.

 

Fonte: Rodrigo Vergara e Manuela Aquino. Publicado originalmente na Revista Superinteressante, edição 189