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Já sabemos que os efeitos do açúcar no cérebro foram comparados ao mecanismo responsável pelo vício em cocaína e que no corpo atua como uma toxina responsável não só pelas taxas crescentes de diabetes e obesidade, mas também pela incidência cada vez maior de doenças cardíacas, câncer e outras doenças crônicas.
Também aprendemos que o refrigerante (com ou sem açúcar) é tão prejudicial para os dentes quanto crack, cocaína e metanfetamina.
Não é exagero, portanto, comparar estes produtos com drogas. E nem comparar os fabricantes de refrigerantes e outras bebidas açucaradas com os cartéis da droga que outrora dominavam a Colômbia.
Pergunte à advogada Esperanza Cerón, diretora da Educar Consumidores, organização que trabalhara anteriormente no problema das mudanças climáticas, nas restrições ao fumo e na falta de água potável nas comunidades pobres da Colômbia, uma nação de 49 milhões de habitantes.
No início de 2016, o país se deparava com a perspectiva inusitada de estabilidade. Depois de décadas de guerra civil e narcoterrorismo, o desemprego se aproximava de quedas históricas, a taxa de pobreza estava baixando, e muitos esperavam a possibilidade de uma paz duradoura com o principal grupo rebelde do país, as FARC.
Em março daquele ano, Alejandro Gaviria Uribe, ministro da saúde, propôs um imposto de 20% sobre os refrigerantes — o equivalente a cerca de US$ 0,10 para a garrafa de um litro — previsto no plano mais amplo de aumento dos impostos apoiado pelo presidente da Colômbia e pelo Ministério das Finanças.
Além de injetar US$ 340 milhões ao ano no sistema de saúde carente de recursos, a medida reduziria o consumo de refrigerantes em um país com uma taxa de obesidade que triplicara desde 1980, afetando 19% dos adultos. E isso chamou a atenção de Esperanza Cerón. Criou-se então uma coalizão de organizações cívicas chamada Aliança para a Saúde Alimentar.
O grupo produziu um anúncio de conteúdo provocador que estava sendo exibido pela televisão, alertando os consumidores sobre o teor de açúcar dos refrigerantes, o qual poderia levar à obesidade e a doenças como o diabetes. O spot de 30 segundos baseou-se em dados da OMS. Quatro refrigerantes açucarados por dia correspondem a 47 colheres de chá de açúcar, alertava o anúncio. E também mostrava, entre outras coisas, um casal com sobrepeso, um pé gangrenado e o que parecia ser um homem sofrendo uma parada cardíaca.
A reação foi violenta.
Na Colômbia, onde o refrigerante em geral é mais barato do que a água mineral, o volume de vendas de bebidas gasosas cresceu mais de 25% nos últimos 15 anos. A Coca e a Pepsi deixaram que a Postobón, grande fabricante nacional de refrigerantes, eque faz parte de um enorme conglomerado que inclui produtores de cana de açúcar, usinas de açúcar e a maior companhia de comunicações do país, a RCN Televisión, divulgasse a mensagem contra o imposto. Respondendo a uma reclamação da Postobón, uma agência do governo colombiano ordenou que o anúncio fosse retirado do ar. Além disso, proibiu Esperanza e seus colegas de falar publicamente dos riscos do açúcar para a saúde, sob pena de uma multa de US$ 250 mil. A Postobón também moveu uma ação contra a agência governamental de proteção ao consumidor, afirmando que as colheres de chá do anúncio constituíam uma medida imprecisa, e que sugeria de maneira desonesta que todas as bebidas açucaradas eram nocivas à saúde.
Já Esperanza começou a receber ameaças por telefone e enfrentar estranhos problemas nos computadores do escritório enquanto homens de tocaia em automóveis estacionados do outro lado da rua fotografavam o pequeno grupo de defesa do consumidor. Ela também foi perseguida por dois homens de motocicleta que bateram na janela do carro e lhe disseram para “ficar de boca fechada”, pois “já sabe as consequências”.
A batalha sobre a taxação das bebidas açucaradas está se tornando uma das brigas políticas mais ferozes do mundo, e foram particularmente intensas nos mercados emergentes, onde a indústria procura compensar a queda do consumo nas nações mais ricas. Hoje, a América Latina tornou-se o maior mercado de refrigerantes do mundo e ultrapassa os Estados Unidos, segundo a Organização Mundial da Saúde, e as vendas de bebidas gasosas na região dobraram desde 2000.
Promovendo um confronto entre a ciência, a política e o poder econômico em dezenas de países e cidades, toda oposição às táticas da indústria foi neutralizada ou as propostas de cobrança de impostos foram emperradas em diversos lugares, inclusive na Rússia, Alemanha, Israel e Nova Zelândia. Em outros países, as fabricantes do produto trataram de explorar suas conexões com os governos e seu prestígio econômico. Em e-mails internos vazados para um grupo de observadores americanos no ano passado, executivos da Coca-Cola descreveram suas estratégias para ganhar ministros de governo e outras autoridades na Bósnia-Herzegovina, Equador, Portugal e regiões da Espanha.
A virada decisiva a favor dos defensores dos impostos também aconteceu em 2016, quando o México — o maior mercado consumidor de Coca-Cola per capita — aprovou um imposto de 10%. De lá pra cá, a taxação foi adotada em outros 30 países, ente eles Índia, Arábia Saudita, África do Sul, Tailândia, Grã-Bretanha e Brunei, favorecendo a saúde de mais de um bilhão de pessoas.
A indústria de refrigerantes afirma que os impostos sobre este tipo de bebida onerariam injustamente os pobres, provocariam um elevado desemprego em razão da queda das vendas e impediriam a consecução do objetivo que pretende: a redução da obesidade. Alguns estudos mostraram que esse tipo de imposto leva a uma queda das vendas das bebidas açucaradas; mas estas medições são tão recentes que ainda não existem provas concretas de seu impacto sobre a saúde. Esse tipo de tática não é novidade: como já vimos aqui, nos anos 60 a indústria do açúcar dos EUA pagou cientistas para que minimizassem a conexão entre o açúcar e doenças cardíacas, e para que promovesse a gordura saturada como responsável pelo problema.
Os organismos da saúde pública de todo mundo, porém, citam a taxação de refrigerantes como um dos instrumentos mais eficientes para a redução do consumo e o primeiro fruto da luta contra a obesidade, diabetes e outras moléstias relacionadas ao excesso de peso, porque estas bebidas têm pouco ou nenhum valor nutricional.
Nunca ficou provado que o assédio à Esperanza Cerón tenha sido provocado pelas fabricantes, e os promotores federais não quiseram investigar. A entidade que representa as fabricantes de refrigerantes nacionais e estrangeiras sobre a questão do imposto, afirmou que não tinha nada a ver com os episódios.
Em novembro de 2016, Esperanza e sua equipe obtiveram uma vitória quando o Tribunal Constitucional do país derrubou a sentença da agência dos consumidores que calara a Educar, e ordenou que devia “abster-se de censurar qualquer outro anúncio relacionado à saúde pública no futuro”, consoante à sua decisão. Para Esperanza, a decisão foi “uma grande vitória da liberdade de expressão na Colômbia”, disse. “Pena que chegou tarde demais”, lamentou ela: no último dia de 2016, usando uma complexa manobra judicial, os líderes do Congresso colombiano liquidaram a taxação dos refrigerantes.
Quem assiste à série Narcos, da plataforma de streaming Netflix, certamente está ouvindo neste momento aquela canção tema de abertura:
Soy el fuego que arde tu piel
Soy el agua que mata tu sed…
Fonte: The New York Times