Tempo de leitura: 4 minutos
Os rituais conferem às nossas vidas significados além dos evidentes. Dão relevo a ações aparentemente sem sentido. Quando se reconhece o ritual, e se lhe confere estatuto e importância, o que vem a significar ser tomado e cuidado na sua transcendência, a vida recobre-se de películas translúcidas que aumentam o seu brilho e, assim, seu valor.
As crianças sabem disso, e observando-as aprendemos bastante. As crianças vivem imersas em rituais, pelo menos quando não as atrapalhamos, querendo que suas experiências de vida sejam lógicas e tenham um fim em si mesmo. Bobagem. As coisas que nos constroem não são óbvias como pensamos.
Observe então a sua criança – se não tiver uma por perto é urgente que a descubra. As crianças são pequenas escolas de recuperação da vida. Observe (de longe, como se fosse invisível) o ritual do seu dar bons dias à boneca preferida. Ou de conversar sozinha numa fala acompanhada. O ritual de varrer o chão com a perfeição com que se varreria a sala de um palácio. O ritual de aconchegar-se a quem vai contar-lhe uma história. Se a criança tem a chance de não ser interrompida nessa sua relação mágica com as coisas, ela preserva o sentido do ritual dentro de si. Isso será uma base de ajuda para a sua vida futura, e para os desafios que encarar.
Esse lugar sagrado, onde a vida assume uma relevância que não tem na sua face evidente, é um lugar de refúgio, onde sabemos que as tormentas nos atingem apenas na proporção com que nosso navio consegue passar por elas. Esse lugar sagrado, que nasce e é cultivado na primeira infância, é o nosso mais secreto interior, o lugar em que o mundo não nos recrimina por sermos esses seres imperfeitos que somos.
Essas bases e apoios que a criança constrói em si será o que, logo ali adiante, daqui a uns anos, permitirá que ela veja transformação onde outros vejam superfícies inertes. Possibilidade onde outros vejam becos. Desafios onde outros vejam riscos. Claro que todos teremos, em nossa história, traumas e medos e desilusões que nos retalhem o coração. Sem dúvida. E ainda bem, porque esses são os momentos em que vamos além de nós mesmos e nos tornamos mais plurais, por vivermos em nós mais uma faceta do sofrimento humano. Tornamo-nos mais aptos a auxiliar o sofrimento do outro, porque estivemos em mais lugares de experiência. Mas é fundamental que tenhamos um refúgio interno. Para onde voltar depois de nos abrirmos e sermos sacudidos.
E, para isso, precisamos de ferramentas. E talvez já não sejamos crianças em nossas primeiras infâncias, e não possamos mais abrir esse espaço único que é o brincar infantil. Ainda assim, podemos ritualizar o nosso cotidiano. Podemos criar momentos de suspensão sagrada em nosso dia, com aqueles com quem dividimos os nossos espaços, tempos e emoções. E isso, agora que não somos crianças, muitas vezes é feito a dois. Ou a três. Em família. No trabalho. Na oração. Nos momentos de encontro verdadeiro.
E veja: não se trata apenas de criar um movimento que se repita e, pelo hábito, continue. Rituais não são hábitos. Nem rotinas. São momentos únicos, que se escolhe repetir justamente por isso: porque são únicos, e nos fazem ter a dimensão de que a vida é mais. Rituais são pequenos gestos, de atenção a nós mesmos e ao outro: o sorriso ao porteiro do prédio, a mensagem de bom dia a quem queremos bem, a atenção, o cuidado, a delicadeza, a percepção, o olhar atento. Porque rituais não têm preço, são atos gratuitos, não há nenhum motivo para a sua existência. É bom ser grato por todos os rituais que criamos, e por todos os rituais que criam ao nosso redor. São eles que nos dão a justa medida de celebrar o estar aqui e agora, e dar graças por isso, e sentir uma unidade que nos transcende e da qual somos parte, unha e carne.
Ana Vieira Pereira é mestre e doutora em Literatura Comparada pela USP. Atualmente dedica-se ao ensino e à pesquisa da escrita dentro do âmbito da criação artística. Coordena o espaço Quinta Palavra, em Botucatu, e é assessora pedagógica da Escola Waldorf Rudolf Steiner, em São Paulo, e da Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp, em Botucatu. É autora de, entre outros, Do ventre ao berço: o parto em casa, Mistache Malabona e O dono do castelo.